quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O Perfil Psiquiátrico do Corrupto

Por Alexandre Pimentel*

 A missão deste artigo não é fácil, principalmente pelo fato de seu autor, apesar de cidadão ativo e extremamente observador, não ser médico nem psiquiatra. Analisar o comportamento do corrupto é algo tão amplo que mereceria um tratado que observasse desde a corrupção daquele que leva os talheres de um restaurante para casa, até aquele que comete desatinos em nome da ciência ou que sacrifica uma população inteira para satisfação de seus desejos pessoais. A idéia deste texto é apresentar elementos básicos para compreendermos a atitude de quem usurpa, rouba e compromete a vida do coletivo.

O dicionário Aurélio define corrupção como algo podre, corrompido, devasso, depravado, que se deixou corromper ou subornar. Etimologicamente o substantivo femininocorrupção deriva do latim corruptio, com o sentido de deterioração, ato, processo ou efeito de corromper. Há também a compreensão que se refere à palavra “ruptura”, que pode significar o rompimento ou desvio de um código de conduta moral ou social.

  Empiricamente acredito que a palavra “corrupto” possa ter origem comum com “carrapato”, ao menos há semelhança entre elas, tanto na fonética quanto na atitude de ambos, ou seja, sugar energia que não lhe pertence, invadir uma estrutura com interesse particular em detrimento da vitalidade do outro, cometer o parasitismo social cujo impacto seja catastrófico em todos os sentidos. Interessante atentarmos para a possibilidade de um carrapato matar um boi enorme e também para o cuidado de não eliminarmos um boi para matarmos um carrapato.

 Os interessados em conhecer o impacto da corrupção e a classificação de países quanto à prática corrupta, têm na Internet uma grande quantidade de informações. As ONGsTransparência Brasil e Transparency International, entre dezenas de outras, apresentam uma série de importantes dados, tanto para os estudiosos quanto para o cidadão comum, maior vítima de todo o processo. Sugerimos, também, o interessante artigo “Quanto custa a corrupção?”, de Ecléia Conforto, publicada no jornal Extra Classe, do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul. Segue anexo, como ferramenta de pesquisa, o “mapa de riscos da corrupção”, publicado pela Transparência Brasil.

  Na condição de redator de um trabalho tão delicado, me sinto na tentação de produzir um livro completo, mas, nesse momento, dados os acontecimentos da vida pública brasileira, sinto necessidade em centrar o foco no perfil psiquiátrico do corrupto. Como acadêmico de serviço social e pesquisador honoris causa de ciências políticas, tenho no sítioHumanitarismo 21, grande fonte de inspiração e uma arejada pesquisa sobre a consciência das massas, matéria absolutamente necessária para um vislumbre maduro da macropolítica e dos porquês sociais da corrupção

 Para compreendermos o corrupto, seja ele da política, da polícia, da empresa, da ciência ou de outras áreas, é necessário sabermos quem é o psicopata. Seria exagero ligar corrupção e psicopatia? O Dr. João Augusto Figueiró, psicoterapeuta do Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo, em entrevista à rádio CBN, explica “o que torna uma pessoa corrupta”. O Dr. Figueiró também afirma, em entrevista ao jornal O Globo, que “a corrupção é mal que não tem cura”. Apesar da abordagem, a nosso ver, ser cerebrocêntrica, muitas coisas interessantes são colocadas, entre elas, exatamente a ligação íntima entre corrupção, psicopatia e sociopatia.

O fato de não se abalar com a dor alheia, de não ter sentimentos de responsabilidade, piedade ou compaixão, de ser frio e calculista, permeia tanto a conduta do corrupto quanto do psicopata e do sociopata, a ponto de podermos afirmar que essas três pessoas, em linhas gerais, são, na verdade, uma só. Na política, por exemplo, temos os que desviam verbas destinadas à assistência social e à educação com avassaladores prejuízos à sociedade. Na ciência, encontramos pesquisadores comprados por interesses comercias, cuja missão é provar a qualquer custo, aquilo que beneficiará seus superiores, mesmo que coloque em risco a saúde ou a vida de seres vivos. Podemos incluir nesse rol a utilização desnecessária da vivissecção que consiste em cortar animais vivos para testes e pesquisas, na maioria das vezes já conhecidos. No campo da religião institucionalizada também podemos verificar toda sorte de corrupção, desde a hipnose de grupos até a histeria coletiva, baseadas no literalismo histórico e visando volumosas arrecadações destinadas a causas mundanas. A religiosidade é a base ética e metafísica da existência, mas quando deturpada se torna cúmplice da mediocridade.

  Se olharmos sinceramente para as características da sociedade contemporânea, perceberemos a quase total impossibilidade de vivermos à parte da corrupção. Toda vez que praticamos atos considerados legais do ponto de vista da lei, mas perversos quanto aos impactos deletérios e efeitos colaterais sociais, estamos, em maior ou menor grau, sendo corruptos. Por exemplo, os investimentos em bolsas de valores, a utilização voluntária de combustíveis fósseis, o consumo ostensivo de alimentos e derivados animais gerados na crueldade ou no artificialismo, a opção deliberada por gêneros alimentícios produzidos a partir de agrotóxicos ou transgênicos, o consumo de drogas permitidas como álcool e tabaco, o envolvimento em cultos embasados na arrecadação comercial, na exploração da fé ou na oferenda de animais, a não separação de lixo orgânico e seco, a dita mentira branca da vida diária e, entre vários outros, o vício na maledicência, sem a devida percepção das diferenças de capacidades humanas.

 É claro que o cidadão comum, em sua inocência inconsciente, não tem, na maioria das vezes, noção da própria prática corrupta. Ele reproduz os condicionamentos impostos pela mídia, repete o comportamento das novelas e, finalmente, utilizando um modelo de eleitoral também corrupto na concepção, elege representantes que conseguem enganá-lo, mesmo que o histórico destes inclua a indevida posse de recursos públicos, aliás, o senso comum tem como normal prática do “rouba mas faz”, fazendo com que políticos do mal ligados a práticas paternalistas se reelejam por vários mandatos.

O combate à corrupção é profundamente necessário, mas, mais urgente, é desenvolvermos métodos de prevenção. Métodos que – no campo da política - não são contemplados pelas eleições diretas onde a base é obrigada a escolher representantes que realmente não conhece. Há uma distância hedionda entre, por exemplo, um senador e a dona Maria do interior da Amazônia que marcou X para escolhê-lo. Esta distância se reduz no caso do vereador de uma pequena cidade, mas ainda não é suficiente para que o princípio da responsabilização e da boa gestão funcionem. O ideal, num olhar humanitarista, seriam eleições de pequenas bases, onde micro comunidades escolhessem pequenos colégios de representantes que, de forma escalonada, escolhessem as linhas ascendentes, envolvendo a cidade o estado e o país. Essa formatação mais fraterna certamente não só reduziria a malignidade mas, certamente, ampliaria as possibilidades de um equilibrado desenvolvimento ecossocial humanitarista.          

O modus vivendi da civilização urbano-industrial pode ser resumido pelo mito da caverna de Platão onde as pessoas vivem sem acreditar que exista o céu, o mar, as estrelas e o infinito. Vivemos presos aos padrões dominantes onde a escuridão dos tempos não nos permite enxergar. Não temos noção do que acontece nos bastidores do domínio, seja na câmara legislativa, nos poder executivo, na indústria do remédio e do alimento ou na empresa que deseja competir a qualquer custo. Estamos emersos numa prisão onde necessitamos lutar pela dignidade mínima, pela higiene básica, pela assistência primária, por água, ar, comida e por um contrato inicial de convivência.

É emergente um plano humanitário de liberdade social e reconstrução ambiental, mas enquanto ele não acontece de forma concreta – e talvez demore muito - sob os escombros de um mundo decadente, devemos utilizar uma grande quantidade de câmeras escondidas que mostrem ao mundo o que acontece em nossas costas. As câmeras, que também podem ser ferramentas para mostrar coisas boas, não resolverão o problema mas estimularão observações e poderão espantar certos seres mal intencionadas.

A crise de valores e paradigmas que experimentamos também é oportunidade de transformação interior. Mesmo na adversidade devemos fazer um esforço sobre-humano para que nossa vida seja exemplo de ética e luta por direitos básicos. Assumir o desafio de ser um cidadão de bem num ambiente obscuro é tarefa para fortes. Se ainda não conseguimos acabar com a corrupção externa, imposta pelo mundo, ao menos dentro de nós, devemos trilhar o caminho da integridade possível, onde o nós seja prioridade ao eu e o individual exista para benefício do coletivo.

*Alexandre Pimentel é escritor, ambientalista e palestrante. Vide http://www.alexandrepimentel.com.br/.

Colaborou Elza Ines

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

NÃO SE MORRE POR AMOR - O QUARENTÃO E A GAROTA DE PROGRAMA - LUIZ TAVARES

PRATA DA CASA – O Livro "Não se Morre por Amor", do funcionário aposentado Luiz Tavares, lançado na Bienal do Rio de Janeiro, já pode ser encontrado nas Livrarias Saraiva. Nas Lojas e no Site.


José Raimundo dos Santos  – Rio de Janeiro

Um homem e uma mulher, uma realidade transformada em sonho, em fantasia. Prazer e desejo envoltos na mais pura ilusão. O amor em mão única, impossível, o risco de se apaixonar pelo corpo, e nunca pela essência.


O amor tem razões que a própria razão desconhece e, por conta disso, alguém se atira num relacionamento sem rede de proteção, na ilusão de alcançar o objetivo cada vez mais distante.

Este livro apresenta um delicioso quebra-cabeça, onde nem tudo parece ser de verdade, onde o amor é algo que faz parte do cotidiano, mas que nunca vai além do sexo.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

DE REPENTE... 60(ou 2 x 30)


Queridos

De forma despretensiosa, inscrevi um texto no concurso Prêmios Longevidade Bradesco Histórias de Vida. Estou chegando de São Paulo, onde fui participar da premiação (dia 06.10.2011).Mandaram um motorista me buscar e me trazer e fiquei num super-hotel nos Jardins, acompanhada de meu príncipe consorte rsrsrs.
Entre quase 200 concorrentes, conquistei o 3º lugar, com direito a troféu e diploma. Mas sinto como se tivesse recebido o Oscar, pois os primeiros colocados eram jovens que trabalharam por alguns anos para escrever histórias que mereciam ser contadas. Meu texto foi o único produzido pela própria protagonista.
O tema central era o relacionamento inter-geracional.
Quase caí da cadeira quando Nicete Bruno, Presidente de Honra do Juri me perguntou: "Você é a Regina? Queria muito conhecê-la. Adorei seu texto!!".

Tive, ainda, o privilégio de ser fotografada ao lado da convidada especial, Shirley MacLaine.

É muita emoção, que gostaria de compartilhar com vocês.Abaixo, o texto premiado.

Beijos,

Regina de Castro Pompeu
Caraguatatuba, SP

DE REPENTE... 60(ou 2 x 30)

Ao completar 60 anos, lembrei do filme “De repente 30” , em que a adolescente, em seu aniversário, e ansiosa por chegar logo à idade adulta, formula um desejo e se vê repentinamente com 30 anos, sem saber o que aconteceu nesse intervalo.

Meu sentimento é semelhante ao dela: perplexidade.

Pergunto a mim mesma: onde foram parar todos esses anos?

Ainda sou aquela menina assustada que entrou pela primeira vez na escola, aquela filha desesperada pela perda precoce da mãe; ainda sou aquela professorinha ingênua que enfrentou a sua primeira turma, aquela virgem sonhadora que entrou na igreja vestida de branco, para um casamento que durou tão pouco!
Ainda sou aquela mãe aflita com a primeira febre do filho que hoje tem mais de 30 anos.

Acho que é por isso que engordei, para caber tanta gente, é preciso espaço!
Passei batido pela tal crise dos 30, pois estava ocupada demais lutando pela sobrevivência.

Os 40 foram festejados com um baile, enquanto eu ansiava pela aposentadoria na carreira do magistério, que aconteceu 4 anos depois.
Os 50 me encontraram construindo uma nova vida, numa nova cidade, num novo posto de trabalho.

Agora, aos 60, me pergunto onde está a velhinha que eu esperava ser nesta idade e onde se escondeu a jovem que me olhava do espelho todas as manhãs...

Tive o privilégio de viver uma época de profundas e rápidas transformações em todas as áreas: de Elvis Presley e Sinatra a Michael Jackson, de Beatles e Rolling Stones a Madonna, de Chico e Caetano a Cazuza e Ana Carolina; dos anos de chumbo da ditadura militar às passeatas pelas diretas e empeachment do presidente a um novo país misto de decepções e esperanças; da invenção da pílula e da liberação sexual ao bebê de proveta e ao pesadelo da AIDS. Testemunhei a conquista dos 5 títulos mundiais do futebol brasileiro (e alguns vexames históricos).

Nasci no ano em que a televisão chegou ao Brasil, mas minha família só conseguiu comprar um aparelho usado 10 anos depois e, por meio de suas transmissões, vi a chegada do homem à lua, a queda do muro de Berlim e algumas guerras modernas.

Passei por 3 reformas ortográficas e tive de aprender a nova linguagem do computador e da internet. Aprendi tanto que foi por meio desta que conheci, aos 52 anos, o meu companheiro, com quem tenho, desde então, compartilhado as aventuras do viver.

Não me sinto diferente do que era há alguns anos, continuo tendo sonhos, projetos, faço minhas caminhadas matinais com meu cachorro Kaká, pratico ioga, me alimento e durmo bem (apesar das constantes visitas noturnas ao banheiro), gosto de cinema, música, leio muito, viajo para os lugares que um dia sonhei conhecer.

Por 2 anos não exerci qualquer atividade profissional, mas voltei a orientar trabalhos acadêmicos e a ministrar algumas disciplinas em turmas de pós-graduação, o que me fez rejuvenescer em contato com os alunos, que têm se beneficiado da minha experiência e com quem tenho aprendido muito mais que ensinado.

Só agora comecei a precisar de óculos para perto (para longe já uso há muitos anos) e não tinjo os cabelos, pois os brancos são tão poucos que nem se percebem (privilégio que herdei de meu pai, que só começou a ficar grisalho após os 70 anos).

Há marcas do tempo, claro, e não somente rugas e os quilos a mais, mas também cicatrizes, testemunhas de algumas aprendizagens: a do apêndice me traz recordações do aniversário de 9 anos passado no hospital; a da cesárea marca a minha iniciação como mãe e a mais recente, do câncer de mama (felizmente curado), me lembra diariamente que a vida nos traz surpresas nem sempre agradáveis e que não tenho tempo a perder.

A capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo diminuiu, lembro de coisas que aconteceram há mais de 50 anos e esqueço as panelas no fogo. Aliás, a memória (ou a falta dela) merece um capítulo à parte: constantemente procuro determinada palavra ou quero lembrar o nome de alguém e começa a brincadeira do esconde-esconde.

Tento fórmulas mnemônicas, recito o alfabeto mentalmente e nada!

De repente, quando a conversa já mudou de rumo ou o interlocutor já se foi, eis que surge o nome ou palavra, como que zombando de mim... Mas, do que é que eu estava falando mesmo?

Ah, sim, dos meus 60 anos.

Claro que existem vantagens: pagar meia-entrada (idosos, crianças e estudantes têm essa prerrogativa, talvez porque não são considerados pessoas inteiras), atendimento prioritário em filas exclusivas, sentar sem culpa nos bancos reservados do metrô e a TPM passou a significar “Tranquilidade Pós-Menopausa”.

Certamente o saldo é positivo, com muitas dúvidas e apenas uma certeza: tenho mais passado que futuro e vivo o presente intensamente, em minha nova condição de mulher muito sex...agenária.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Marx, a obra e seu mundo


Valor 25/11

Era o ano de 1883. "Em 14 de março, 15 para as 3 da tarde, o maior pensador vivo cessou de pensar." Foram essas as palavras pesarosas com que Friedrich Engels iniciou sua fala no funeral de Karl Marx, encontrado morto três dias antes. Cerca de dez pessoas estavam presentes no cemitério de Highgate, em Londres, informava a edição do dia 22 do "Der Sozialdemokrat", órgão do Partido Social-Democrata alemão. Em nome das ideias de Marx, no entanto, fizeram-se revoluções - a começar pela de 1917, na Rússia, onde nasceu então o primeiro regime socialista do mundo. Essa face institucional da criação política de Lênin e seus aliados bolcheviques iria extinguir-se em 1991, quando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas deixou formalmente de existir. Passados 20 anos desse esfacelamento de um sonho comunista, que se completam em 31 de dezembro, as últimas palavras de Engels à beira do túmulo de Marx, 128 anos atrás, soam absolutamente verdadeiras: "Seu nome atravessará os tempos, como também sua obra".

E assim foi, embora as ideias de Marx - e de Engels, seu amigo e parceiro intelectual -, acabassem por se tornar, para muitos, mera referência para estudos acadêmicos de interessados em revolver baús da teoria econômica comunista ou da aplicação do socialismo dito científico - searas em que não faltariam registros de insucessos desastrosos.

Contudo, a permanência do marxismo como método de análise e interpretação da vida em sociedade é um fato de todos os dias, ainda que submetido aos rigores, pelo lado dos antimarxistas, de uma crítica que vai da desqualificação intelectual ao mero desdém. Enfim, o pensamento de Marx, e de Engels, continua a atrair a atenção de estudiosos de filosofia, política, sociologia, economia, antropologia. E a fidelidade ideológica ainda reúne muita gente em torno dele, no mundo todo. Isso, embora sua obra, para quem o vê apenas como um nome por trás de uma utopia que teve a validade vencida quando a União Soviética se desfez, tenha se esvaído como uma espécie de inutilidade histórica. Essa será, porém, uma simplificação. Pois não há como negar que Marx foi um dos mais importantes pensadores do século XIX.

Como argumenta o economista Ricardo de Mendonça Lima Tolipan em "A Ironia na História do Pensamento Econômico", (Ipea - 1990), teria deixado de haver razões para "nos prevenirmos contra uma leitura de Marx que acaba por criticá-lo. Pelo contrário, talvez o seu discurso esteja afinal paralisado por mais de um século de leituras de 'boa vontade', um discurso inutilizado por leituras sectárias, dogmatizado pela necessidade de atacá-lo ou defendê-lo. Quem sabe se numa estratégia menos maniqueísta de leitura não esteja sua possibilidade futura?"

A obra de Marx continuaria, então, aberta a interpretações e, quem sabe, a futuros reencontros com a realidade concreta. Fique-se com a possibilidade de novas leituras, literalmente, das inúmeras páginas que escreveu - no mínimo em tentativas para compreender o que ele diz, campo minado em que geralmente se perdem as melhores intenções de esclarecimento.

Raymond Aron passou décadas estudando a obra de Marx, doutrina que, dizia, tem uma qualidade raramente encontrada no mesmo grau entre outros pensadores: pode ser acuradamente explicada em cinco minutos, cinco horas, cinco anos, ou em meio século. Também permitiria, esse saber de formidáveis dimensões e alcance intelectual, que pesquisadores dediquem sua vida a tentar compreender o que Marx queria dizer, afinal, e acabem na autoindulgência de uma "semiconfissão de ignorância" ("O Marxismo de Marx", Arx, 2005).

Marx e Engels preocupavam-se com o uso que a posteridade faria de suas ideias. Mary Gabriel, autora de "Love and Capital - Karl and Jenny Marx and the Birth of a Revolution" (publicado pela Little Brown, nos Estados Unidos, e a ser publicado no Brasil pela Zahar em 2012), mencionou, em entrevista ao Valor, carta em que Engels fala sobre esses cuidados a um amigo, em 1853. "Os receios de que experimentos políticos baseados nas ideias deles pudessem ser conduzidos de forma apressada soam como se ele previsse as interpretações equivocadas das ideias de Marx que se fariam no século XX - afinal, fracassadas. Mas Engels diz que ele e Marx estariam protegidos de acusações de serem brutos e estúpidos porque se teriam documentado em sua literatura. Penso que isso é muito importante para nós, hoje. Não deveríamos ler interpretações de Marx e Engels, mas deveríamos ler Marx e Engels eles mesmos, para chegar à mais exata compreensão de suas ideias." Sempre, claro, dentro do possível.

Neta de avô russo emigrado da União Soviética para os Estados Unidos, Mary ouvia falar de Marx e suas ideias ainda na infância e se lembra de leituras do "Manifesto Comunista". Mas não é nem comunista, nem marxista, diz. "O único 'ismo' que tem a ver comigo é o de jornalismo" (ela foi editora da Reuters por mais de 20 anos, antes de se dedicar à literatura).

Mary escreveu o livro, "uma biografia de Marx e sua família", sem pretender esclarecer qualquer aspecto da teoria do filósofo. Quis, apenas (e o faz com bom material de pesquisa e senso de contextualização) "apresentar os leitores ao homem e à sua vida pessoal, de modo que fôssemos todos ajudados a ter noção adequada do lugar onde suas ideias eram produzidas [sua casa, sua família] e como sua própria vida as afetava. Acredito que, compreendendo-se o homem Marx, seja mais fácil compreender o teórico Marx."

Seja qual for a profundidade da leitura que se faça da obra de Marx, será preciso ter em mente que ele foi um homem de sua época, sujeito a todas as influências de seu tempo, observa Fernando Magalhães, professor do programa de pós-graduação em filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (autor de "10 Lições sobre Marx" - Vozes, 2009). Isso não o teria eximido de assumir responsabilidades inerentes à expressão pública de seu pensamento. "Os intelectuais são responsáveis por aquilo que dizem. Se alguém não explica claramente o que falou, suas ideias podem ser apropriadas de várias formas". Contudo, "ninguém tem o direito de fazer o que quiser com suas palavras".

Então, pode-se discutir como seria a transformação do mundo pretendida por Marx, isto é, como se daria a revolução que, ele imaginava, faria o capitalismo sucumbir - se pacífica ou violenta. Contudo, pondera Magalhães, afirmar, por exemplo, que Marx aceitaria a permanência do capitalismo se o sistema proporcionasse "trabalho e justiça para todos" já não seria uma interpretação, mas uma "falsificação" uma "criação", um "erro grosseiro". Marx não via alternativa: o capitalismo deveria desaparecer.

A leitura pode ser dogmática. "Aí, o autor se transforma em um mito ou num deus", adverte Magalhães, "tem-se uma espécie de leitura hagiográfica, tudo que ele falou está correto. Existem correntes marxistas que ainda acreditam nisso e Marx não teria se equivocado em nada. Mas tanto ele como Engels mostraram que sua teoria era a exposição de um processo em movimento. Investigava a realidade [da época] e apontava para uma direção, que poderia mudar, dependendo dos rumos tomados pela história" (o texto exemplar disso, recomenda Magalhães, está na introdução de Engels a 'As Lutas de Classes na França', de Marx).

E há a leitura dos "marxistas mais lúcidos, que, embora considerem o marxismo uma teoria não só útil, mas inteiramente válida para entender o capitalismo, reconhecem que, apesar de ainda ser o principal instrumento para compreender a realidade, não é a única a ser aplicada, em função de todas as transformações operadas no interior do próprio sistema capitalista". Seria apenas coincidência, pergunta Magalhães a esse propósito, que as crises continuem a ocorrer e que os próprios empresários e capitalistas tentem compreender como Marx previu tais crises com tanta antecedência?

Mal-entendidos, seja qual for a cor das lentes que se coloquem sobre os escritos de Marx, tanto podem ser de boa-fé ou ideologicamente propositais. Nesta categoria estaria a responsabilização de Marx por tudo de mau que ocorreu na extinta União Soviética. Magalhães faz a observação e recomenda a leitura do livro "Marx (sem ismos)", do espanhol Francisco Fernandez Buey (editora da UFRJ, 2004), no qual se lê, assinala, que "as interpretações apressadas condenam Marx por tudo que ocorreu na URSS, mas ninguém condena Cristo, ou mesmo a "Bíblia", pela Inquisição. Não é lá que está escrito 'à bruxa não deixarás viver'? Ou o "compelle intrare", que se encontra no Evangelho, com a proposta de trazer os fiéis de volta à casa pela força? Mas aí - ah, não, é diferente! Interpretaram mal o que o livro quer dizer. Mas Marx não se interpreta mal."

Para efeitos práticos, contudo, já não haveria utilidade em remexer no que Marx disse ou deixou de dizer. Em livro agora publicado no Brasil ("Ascensão e Queda do Comunismo" - Record, 2011), o cientista político e historiador inglês Archie Brown faz a completa demolição da mais ínfima perspectiva de ressurreição do sistema que, imaginaram Marx e Engels, se sobreporia ao capitalismo. O que acabou foi o comunismo, desmilinguido na prática e envelhecido na teoria.

"Se até certo ponto ainda faz sentido descrever como comunista o maior e mais importante dos Estados ainda governados por um partido comunista", diz Brown, "é por que a China mantém plenamente o monopólio do poder do partido e a organização estritamente hierárquica e a disciplina associadas ao "centralismo democrático". De muitas maneiras, porém, a China é hoje um sistema híbrido. Sua economia se afastou tanto da ortodoxia comunista que tem sido descrita como um exemplo de "capitalismo de partido-Estado".

Brown chega à constatação da sucumbência do comunismo, na atualidade e nas possibilidades de ser encontrado em algum lugar no futuro, por considerar que características essenciais do sistema foram se afastando mais e mais da realidade visível em qualquer parte do mundo (com a exceção talvez da Coreia do Norte). Essas peculiaridades seriam as seguintes:

Monopólio do poder mantido pelo partido comunista. "Na época de Stalin, isso era conhecido como "a ditadura do proletariado", já que se entendia como um axioma que o partido representava os interesses e a verdadeira vontade do proletariado. No período pós-Stalin, principalmente a partir do início dos anos 1960, o termo oficial mais comum era "o papel da liderança do partido", em vez de ditadura do proletariado.

Centralismo democrático. "Teoricamente, significava que podia haver uma discussão de questões - o componente "democrático" - até que se chegasse a uma decisão. A partir daí, a decisão dos principais órgãos do partido era obrigatória e tinha que ser implementada de maneira estritamente disciplinada.

Posse não capitalista dos meios de produção (ou sua posse estatal ou social), condição à qual se liga uma quarta, o domínio de uma economia de comando, em oposição a uma economia de mercado.

Propósito declarado de construir o comunismo como objetivo final e legitimador. "Em termos de política cotidiana, isso era claramente muito menos importante do que o papel de liderança do partido ou o centralismo democrático. Era, porém, uma característica que diferenciava os sistemas comunistas dos regimes totalitários e autoritários, bem como dos países governados por partidos socialistas do tipo social-democrata. Tinha um lugar importante na ideologia oficial, embora não tivesse importância prática imediata."

Existência de um movimento comunista internacional e o senso de pertencer a ele. "A existência desse movimento era de grande importância ideológica. Era o suposto internacionalismo do comunismo que atraía muitos de seus adeptos."

"Das seis características, são as duas últimas que desapareceram mais completamente", observa Brown. O movimento comunista internacional tinha sede em Moscou, embora a China de Mao tenha representado um polo de atração alternativo. "Esse movimento transnacional acabou, e também a aspiração de construir uma sociedade comunista. Apesar da retórica de ter o comunismo como objetivo, nenhum partido comunista governante ainda enfatiza sequer em teoria o movimento em direção a uma sociedade sem Estado, a fase culminante e 'inevitável' do desenvolvimento humano, conforme imaginado por Marx."

Magalhães não vê um quadro como o sugerido por Brown, pronto e acabado. "Apesar de ter escrito no século XIX, as linhas gerais [ressalva que ele sublinha] da teoria de Marx permanecem válidas. Marx fez uma análise da anatomia do capitalismo e, não obstante as muitas revoluções, entre aspas, pelas quais o capitalismo passou, seus problemas de fundo não foram solucionados. A desigualdade entre as pessoas e entre os países, a alienação, a relação trabalho/capital, tudo se mantém no interior do capitalismo atual."

Para Magalhães, o "espectro de Marx" de que falava Jacques Derrida anda por aí, nas praças das manifestações de revolta popular, nas marchas contra a corrupção, na crítica à discriminação racial e social, até no combate à homofobia. "Um espectro não morre. Acho que este é o segredo de Marx. Ele viu o lado científico da história, mas também se empolgou com o pathos, a paixão que move as massas. Acho que é por isso que ele está vivo e sempre retorna quando volta a crise."

O próprio Marx fala em "espectro", aquele de um "falso comunismo". Suas palavras: "Estou a um passo da morte e temo pelo que virá, temo pelo que será feito em nome de minhas ideias e pelo que não será possível fazer. Certa vez, disseram-me que, na França, um partido político dizia-se marxista, e eu retruquei de imediato: 'Eu, pelo menos, não sou marxista'."

Marx era, contudo, um benevolente: "Minha obra permanecerá, usem-na como quiserem, mas eu sei que meu objetivo - a análise do funcionamento do modo de produção capitalista - foi apenas iniciado, e meu universo teórico demanda e aceita contribuições e adendos, aceita até as supressões que o avanço no conhecimento exige de qualquer modelo teórico".

É o que se lê em "O Manuscrito Secreto de Marx" (Casarão do Verbo, 2011), do jornalista, escritor e economista Armando Avena, uma visão romanceada da obra e da vida de Marx - tentativa interessante de suavizar, para o leitor comum, o caminho das pedras de quem pretende compreender o gênio, ainda que pelas margens.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Para quando você vier de férias ao Ceará

Por Acoelhof

Pegue a CE-085, costa oeste, direção Jericoacoara. Percorridos uns 170 quilômetros, vire à direita, direção Icaraí de Amontada. Mais uns 30 quilômetros, passe pelo posto Dois João e pegue a primeira à esquerda, na placa Moitas. O asfalto só chegou recentemente ao lugarejo. De longe, você vai avistar cataventos gigantes, sinal de que é uma região bastante ventilada. Se você não gostar de sossego, não vá. Se não gostar de vento forte, não vá. Se gostar de televisão, não vá. Lá, esqueça o mundo, puxe tudo da tomada, não há quase o que fazer na vila. Leve um livro ou o equipamento para a prática do kite ou do windsurf. Para que você só saia da pousada para o mar, eles capricharam nos seis bangalôs e nas duas suítes. Tudo feito com extremo bom gosto.
O terreno foi muito bem aproveitado, a vista é de tirar o fôlego: Villa Mango.
Os gringos adoram (veja o que eles andam dizendo sobre o lugar no tripadviser- há link no site). Para que você só saia da pousada para o mar, eles capricharam também no restaurante, de chef premiada.
Não é preciso sair da pousada, mas saia. É bom ir à vila, conversar com os nativos, a gente sempre aprende com eles. Vá ao restaurante Praia Azul, do nativo Zé Nunes. Você vai gostar da conversa dele e da comida caseira da dona Edilene.
De dia, os gringos pegam leve na comida, eles sabem que vêm os ventos pesados do kite ou do wind. À noite, eles vão ao Zé Nunes. Fomos duas vezes lá para o almoço. Na segunda vez, da cozinha dona Edilene perguntou se a geladeira, que fica do lado de fora, ao lado das mesas, estava trancada com um cadeado. Uma filha veio, tirou o cadeado da geladeira, disse “vocês podem se servir” e saiu. Depois chegou Zé Nunes com um gringo na garupa da moto. Perguntei de onde o gringo era. Zé Nunes disse “sei lá de onde ele é; mas quando vem um pessoal que não tenho condição de compreender, ele sempre me ajuda”. O gringo podia ajudar mesmo, já falava português direitinho.
Saiu dizendo “vou pegar o beco”.
Soubemos que a chef de cozinha da Villa Mango havia sido premiada no festival internacional do camarão da Costa Negra, em Acaraú, no fim de semana prolongado com o feriado de 15 de novembro. Provamos o prato, justamente premiado. Mas a chef que nos perdoe. Naquele fim de semana, no nosso concurso particular, o vencedor foi o prato “Beijupirá ao forno” da dona Edilene.


PS: Prometi a Zé Nunes que iria divulgar o restaurante dele. Feito, Zé Nunes.


Acoelhof Fortaleza (acoelhof@gmail.com)

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

30ª Feira do Livro de Brasília


Com realização da Câmara do Livro do Distrito Federal, apoio das Secretarias de Turismo e da Cultura do GDF e patrocínio da Petrobras, chega ao Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade, sob a curadoria de Iris Borges, de 11 a 20 de novembro a


30ª Feira do Livro de Brasília
Sustentabilidade - a leitura no desenvolvimento humano e social


Democratização do acesso e valorização da leitura, fomento à leitura e à formação de mediadores e incremento do mercado livreiro - em concordância com os quatro eixos do PNLL (Plano Nacional do Livro e da Leitura).


Consolidada com um dos mais importantes eventos culturais e, certamente, o mais expressivo encontro entre os apaixonados por literatura da Capital, a Feira do Livro de Brasília, a segunda mais antiga do Brasil, chega a sua 30ª Edição com uma programação extensa e diversificada distribuída em 10 dias com mais de 120 horas de oficinas, bate-papos, palestras, eventos culturais, convidativos espaços para troca de experiência, livros e de convivência, além de exposições. Esta 30º Ed. da Feira tem como patrona a escritora Dad Squarisi, por sua trajetória e rica contribuição e dedicação à literatura em nosso país.


Para as Palestras e Bate-Papos, a curadora, Íris Borges, convidou renomados e consagrados autores brasileiros como Marina Colasanti (vencedora do Prêmio Jabuti/2011 na categoria juvenil com Antes de Virar Gigante e Outras Histórias (Ed. Ática)), Bartolomeu Campos de Queirós, Carlos Maltz, Laura Muller, Lucília Garcez, Nicolas Behr, Margarida Patriota, Ilan Brenman, Tino Freitas além de importantes nomes da literatura internacional como Boniface Ofogo, da República dos Camarões, Yoram Meltzer, de Israel, Kangni Alem e Philippe Davaine, da França, Álamo Oliveira e Cristina Taquelim de Portugal, Joe Hayes, dos EUA, Wellington Cucurto e Cristian de Nápoli da Argentina e Elias Serra Martínez e Ofélia Bolivar da Espanha. Estes encontros reservam descontraídos bate-papos na busca de revelar e descobrir diferentes processos criativos além de discutir políticas públicas de fomento a produção literária e a leitura.


As oficinas são criativos e instigantes convites a todos, bem como a estudantes e professores, que buscam a apreciação de processos de construção literária além de construir maior intimidade com a arte da literatura. Os temas das oficinas são variados e trazem contação de histórias, enfrentamento do Bullying, jogos teatrais, criação de ilustrações para livros infantis e gastronomia, com chefes de cozinha e autores de livros de gastronomia. As oficinas são todas gratuitas com vagas para até 50 pessoas, cada, e serão preenchidas por ordem de chegada.


Leitura na Maturidade, espaço especialmente criado e coordenado pela Biblioteca Demonstrativa de Brasília para atender um público bastante especial apresentando atividades que estimulam a leitura na melhor idade, em ambientes que promovem a socialização, o aprendizado e troca de experiências.


Teatro, música, dança, manifestações culturais e divertidas contações de histórias estarão presentes na Arena Cultural. Um espaço livre para seduzir e convidar ao rico universo da literatura o público infanto-juvenil, com mais de 50 horas de programação.


Exposições apresentando a versatilidade e riqueza, atual e histórica, dos livros e da literatura brasileira estarão lá para que todos possam conhecer e passear pela história. Fotos dos objetos achados dentro dos livros doados sob a curadoria do Instituto Casa do Saber; Livretos com material reciclável da Escola INDI - Instituto Nacional Desenvolvimento infantil; Capas dos diários oficiais da Imprensa Nacional; e Cordel montada pela Biblioteca Demostrativa.


A literatura de Brasília estará bem representada com a presença de autores da Casa de Autores e da Academia Taguatinguense, com suas obras e participações em palestras, oficinas, espetáculo e bate-papos. Instituições como o Sindicato dos Escritores e a Academia de Letras do Brasil também participarão de diversas atividades.


Sustentabilidade é o tema e o carro chefe desta Edição da Feira, que terá palestras e oficinas com este enfoque. Destaque para a participação dos escritores do Instituto Eloisa Cartonera, da Argentina, que trabalha com catadores de materiais recicláveis. O Instituto argentino vai ministrar oficinas e realizar um sarau poético. Eles também publicarão um livro com poemas de autores de Brasília e da Argentina, que será lançado na Feira.


A 30ª Feira do Livro de Brasília acontece de 11 a 20 de novembro no Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade sempre das 10h às 22h.
Entrada franca e livre para todos os públicos.
Mais informações e programação completa

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Why can we?



No Brasil não temos essa "cultura" de economizar água e outros recursos que o Planeta nos oferece para possibilitar a vida. Mas se até os animais sabem disso, porque não podemos nós também poupar a água, tão preciosa para a existência dos seres vivos?

terça-feira, 8 de novembro de 2011

SALVADOR ESTÁ PARANDO


“Em breve não haverá mais chão para construir em Salvador, embora mais gente haverá para ocupar o vazio que se acaba” (José Nogueira – arquiteto urbanista, professor da Unifacs)

Por Orlando Amado

A verdadeira densidade demográfica de Salvador
Há algo de errado no reino do acarajé. É certo que políticas governamentais e ações estratégicas voltadas para a melhoria da cidade buscam referências nos dados informados pelo IBGE; formulam diretrizes que a seu tempo e no seu contexto irão orientar, por exemplo, a elaboração do PDDU - Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, as normas de uso e ocupação do solo, a avaliação da necessidade de novas ruas e avenidas, e muitas outras mais, cruciais para o dia-a-dia da cidade. Elas, no entanto, podem estar se baseando em parâmetros incorretos.

O site do IBGE, informa com dados do censo de 2010, que a área territorial de Salvador é de 693,292 km2, população de 2.675.656 habitantes e densidade demográfica de 3.859,35 hab/Km². Ocorre que a zona territorial da cidade de Salvador tem o formato de um triângulo quase equilátero, com mais ou menos 26 km de cada lado, portanto com área territorial de não mais que 330 km2. Com uma população, atualmente, de quase 3.000.000 de habitantes, numa conta fácil para qualquer estudante de ensino médio, a densidade demográfica de Salvador não é de 3.859,35 hab/Km² e sim de cerca de 9.100 hab/Km².

Informações erradas como esta, geram uma interminável cadeia de equívocos que conduz a graves distorções da realidade, certamente provocando ações governamentais insuficientes e inadequadas para a efetiva e urgente solução dos grandes problemas que hoje sacrificam a cidade.

“a densidade demográfica de Salvador não é de 3.859,35 hab/Km² e sim de cerca de 9.100 hab/Km².”

A população da cidade de São Paulo cresceu menos de 5% entre 2000 e 2010 (de 10.434.252 para 10.990.249 habitantes). Já a população de Salvador, só entre 2000 e 2008 cresceu 20,69% (de 2.443.107 para 2.948.733 habitantes). Foram 505.626 novos habitantes nesse período. É quase que uma Feira de Santana (segundo maior município em população no Estado, com 584 mil habitantes) colocada dentro de Salvador em oito anos. Com este crescimento populacional, Salvador tem atualmente densidade demográfica de 9.100 hab/Km², a maior densidade demográfica dentre as maiores capitais do Brasil e uma das maiores do mundo. Sem grandes obras de infraestrutura viária e transportes públicos, de mobilidade urbana enfim, Salvador está “literalmente, parando”.







Densidade demográfica, estrutura de transportes e qualidade de vida.
Segundo o censo americano de 2.000, a população de Nova Iorque, de 8.008.278 habitantes, praticamente não cresceu na última década. A cidade, com densidade populacional de 10.194,20 hab/km2 tem IDH de 0,967 , possuindo uma excelente infraestrutura de mobilidade urbana, com 370 km de linhas de metrô, e uma vasta e eficiente rede de ônibus, compondo assim um dos mais completos e integrados sistemas de transporte de massa do mundo. Londres tem população de 8.278.251 habitantes, densidade demográfica de 12.331 hab/Km², um metrô de 400 km de linhas e um elevadíssimo padrão de IDH de 0,940. São Paulo, com 11.253.503 habitantes, densidade demográfica de 7.497,35 hab/km2, com 74 km de linhas de metrô, tem IDH de 0,841, o 63° na colocação nacional. Salvador, com 3.000.000 de habitantes, densidade demográfica de quase 9.100 hab/ Km², sistema de transporte público precário, tem o baixíssimo IDH de 0,805, o 467° na colocação nacional.
Ainda que os fatores aqui comentados não sejam diretamente computados para efeito do cálculo do IDH, é fácil perceber como resulta estreita e direta a relação entre o IDH - Índice de Desenvolvimento Humano e a qualidade do transporte público, independentemente da população e densidade demográfica altos.


A distribuição populacional.
Salvador, cidade saturada, estrangulada, asfixiada, apresenta agora os sinais das últimas administrações, fracas, míopes, personalistas, externando um problema que já está ficando incontornável, que já está batendo às portas dos seus próximos governantes. Os atuais fingem desconhecê-lo, “passando a bola adiante”, porque as piores consequências não serão sentidas agora, na sua gestão, e sim nas próximas. É assim como uma bomba de efeito retardado, cujos primeiros sinais já podem ser sentidos, que está armada para explodir a qualquer momento,
Dentro da área urbana de Salvador, diversos “bairros” têm densidade demográfica de dimensões desumanas, como o Nordeste de Amaralina, com 50.000 hab/Km², Novos Alagados com 49.000 hab/km2 e Cajazeiras com mais de 40.000 hab/km2. Imensos aglomerados de casas inacabadas, com paredes sem reboco e ferragens aparentes, são “bairros” nascidos sob a forma de “invasões” quase que consentidas pelo poder público, verdadeiros “currais eleitorais” estimulados pelas ações populistas irresponsáveis dos “políticos de plantão” que, para se omitirem de destinar recursos para a melhoria dos sistemas de mobilidade urbana, permitiram (não impedir é o mesmo que permitir) que pessoas de baixa renda levantassem a sua habitação de forma irregular, na maioria dos casos sem qualquer infraestrutura, em áreas localizadas o mais próximo possível dos seus locais de trabalho. Assim, os seus ocupantes, quase sempre trabalhadores informais, carentes de tudo, podiam até ir andando para o trabalho, não precisando de muito empenho do poder público para a melhoria do sistema de transporte coletivo.

Isso provocou um desordenado processo de ocupação, pelo que a cidade paga hoje um alto preço, seja com a inegável desfiguração da cidade, ou com o baixíssimo IDH observado nessas. Por conta da altíssima densidade demográfica desses verdadeiros “amontoados humanos”, tornam-se inviáveis melhorias nos sistemas de saneamento urbano, de transportes ou de segurança pública, pela extrema dificuldade de acesso, o que os faz ficarem isolados, quase ilhas, redutos em potencial de criminalidade e de altíssimos índices de violência.

Ao mesmo tempo, regiões como Stella Maris, Itinga, Ceasa, Represa de Ipitanga e Tubarão, todas nos limites do município, são grandes vazios urbanos com baixas densidades demográficas – com menos de 1.000 hab/Km², e uma vocação natural para serem vetores de políticas positivas de uso e ocupação do solo, prontos para atender a medidas de melhor distribuição habitacional, viabilizadas por agressivas ações governamentais que priorizassem basicamente as vias de acesso e o transporte público. Transporte de massa eficiente deve ser a prioridade. O candidato a prefeito que tiver essa meta para o seu governo, certamente estará na frente.

“Transporte de massa eficiente deve ser a prioridade.”

A falta de bom sistema de transporte público e o transporte individual.

Alguns “especialistas” dizem que a multiplicação de carros no Brasil é uma “bomba relógio ambiental” de grandes proporções. Na verdade, a relação veículo por habitante no Brasil, que ainda é de cerca de 1 veículo/6 habitantes (com a ascensão das classes C e D essa relação será, em média, de 1 veículo/4,8 habitantes em 2014, e deverá ir a 1 veículo/3,4 habitantes em 2018) é relativamente baixa se comparada com países desenvolvidos como Alemanha, Japão, Reino Unido, França, Espanha e Canadá, que têm entre 1 veículo/1,6 habitantes e 1 veículo/1,9 habitantes. Nos Estados Unidos, a paridade de 1 veículo/1,2 habitantes é possibilitada por uma excelente infraestrutura de mobilidade urbana que permite essa convivência pacífica, sem que isso signifique engarrafamentos caóticos – exceto casos pontuais, localizados, aceitáveis.
É indiscutível que quanto melhor o transporte público, melhor a cidade se torna para todos, inclusive para os usuários de automóveis. Nas mais avançadas cidades do mundo, cidades que atraem muitos investidores, consumidores exigentes, e muitos turistas, a maioria da população transita em transporte público. Quando o poder público investe mais no transporte individual, deixando o sistema de transporte de massa em segundo plano, numa péssima inversão, até os mais pobres procuram os carros para se locomover. É esse o ambiente propício para a instalação das “máfias do transporte alternativo”.
Em Salvador, existem hoje cerca de 750.000 veículos (uma razoável relação de 1 veículo/4 habitantes). O problema é que a estrutura viária não acompanhou o crescimento da população e do nº de veículos, na mesma proporção; os carros não encontram espaço para circular. O atual sistema viário de Salvador já não suporta a quantidade de carros que entra em circulação diariamente, para suprir a falta de transporte público eficiente, se “amontoando”, engarrafando, congestionando em qualquer horário, todas as vias de tráfego, insuficientes que são para essa quantidade de veículos.
Nos chamados “horários de pico”, quando se adensa o volume de tráfego, um veículo gasta uma hora para percorrer menos de 8 km, qualquer que seja a sua direção. Ocasionalmente acontece um “travamento” geral do trânsito que quase triplica esse tempo, quando se chega a gastar 1 hora para se percorrer menos de 5km. Não é pra menos, pois em cada km2 da cidade existem 9.090 habitantes e 2.270 veículos; lembrando que esse mesmo quilômetro quadrado tem que conter espaço para a moradia, para o comércio, para o lazer e para a indispensável circulação, sem sombra de dúvida, fica indiscutível que, sem uma boa estrutura viária e sem transporte público eficiente, esta é uma equação catastrófica.

“Em cada km2 da cidade existem 9.100 habitantes e 2.270 veículos;
sem uma boa estrutura viária e sem transporte público eficiente,
esta é uma equação catastrófica.”

Entre 2001 e 2009 a frota de veículos de São Paulo aumentou 47% enquanto a de Salvador aumentou 61%. Essa tremenda desproporção fica mais grave ainda se compararmos a renda per capita paulista com a bahiana, o que ajuda a compreender porque os pátios das empresas que fazem “buscas e apreensões” de veículos são mais abarrotados aqui do que lá, proporcionalmente, e porque 42% da frota de veículos rodou em Salvador em 2009 sem o licenciamento. Dentre as capitais do Brasil que mais crescem, Salvador possui uma das mais baixas “rendas per capita”. Ninguém, salvo em poucas exceções, usa carro só por que quer ou por puro exibicionismo, comportamento pouco observado em quem usa o carro só pra ir e voltar do trabalho. Além de tudo, o custo de manutenção de um veículo é alto, girando em torno de R$ 10 mil anuais, para um veículo médio. E o bahiano continua comprando carro mesmo sem poder ou sem necessidade, enquanto a cidade segue explodindo, destruindo a vida do cidadão que está sendo forçado a usar o carro para se deslocar por não ter opção de transporte público. Os carros deveriam permanecer, a maior parte do tempo, em casa, nas garagens. Além de dinheiro, o motorista perde uma boa parte de sua vida. Sem um eficiente transporte de massa não há como escapar da utilização do automóvel; é a única e desesperada opção. Resta a modalidade de seguro mais usada em Salvador que é o adesivo com as inscrições “Deus é fiel”, “Deus protege” ou “Foi Deus que me deu”.
A questão do congestionamento na Bahia está passando dos limites, chegando ao desastre. Fugindo disso, boa parte da “classe média” de Salvador está indo embora, para municípios vizinhos, bem próximos e muito mais espaçosos e com crescimento planejado e organizado e possibilidades mais humanas de habitação e lazer. Isso, certamente, representa uma significativa evasão na arrecadação de impostos. Os candidatos à prefeitura de Salvador têm que enxergar isso.

“Isso, certamente, representa uma significativa evasão na arrecadação de impostos.
Os candidatos à prefeitura de Salvador precisavam enxergar isso.”

Avenidas saturadas
Um veículo de passeio, parado, ocupa em média 8m² (em trânsito, esta área é mais que dobrada, chegando a mais de 15m²). Se levarmos em conta os ônibus e caminhões, que ocupam três vezes esta área, a enorme quantidade de semáforos e quebra-molas, o “efeito elástico” quando os semáforos se abrem, as ocorrências imprevisíveis, eventuais obras, etc., temos que multiplicar em muito a área efetivamente ocupada pelos veículos em trânsito. Qualquer pessoa percebe que a área da malha viária existente não comporta esta quantidade de veículos das horas de pico e é para estas horas que as vias têm que ser dimensionadas. No entanto, uma cidade nunca resolverá o problema de engarrafamentos apenas dando mais espaço para automóveis, construindo mais vias ou duplicando as já existentes, pois o espaço que for acrescentado fatalmente também será ocupado. Mais investimento em transporte rápido de massa significa menos carros particulares nas ruas. O sistema viário de Salvador carece de uma nova matriz de mobilidade, que privilegie o transporte de massa.

“Mais investimento em transporte rápido de massa significa menos carros particulares nas ruas.”

O resultado é o que se vê todos os dias, a qualquer hora, em todas as avenidas da cidade. Carros se comprimindo, se empurrando, estressando os seus condutores e passageiros, tirando-lhes todos os dias muitas horas de suas vidas só para se deslocarem na ida e na volta para o trabalho, num terrível conflito entre carros e pessoas. Não existe mais “hora do rush” e isso significa perda total de mobilidade; um acidente qualquer numa dessas vias, em qualquer horário, é um verdadeiro caos. Estudantes deixam de chegar aos seus cursos, ou ficam nas portas das escolas esperando serem apanhados, doentes não conseguem ser atendidos pelas ambulâncias nem chegar aos médicos e hospitais, embarques para viagens de ônibus ou de avião são perdidos, enfim, vidas são transtornadas, com seus compromissos de toda ordem cancelados ou perdidos.
Se o bahiano deixar o carro em casa, onde ele realmente deveria permanecer, não encontra transporte público; forçado a sair com o carro, percebe que as vias que existem são insuficientes para ele trafegar. Com todas as vias engarrafadas, as características que as hierarquizam em estruturantes, alimentadoras, de integração, de ligação ou de conexão e acesso, se perdem completamente, fazendo de Salvador uma cidade caótica, parada, estrangulada. A luta por uma vaga nos estacionamentos então, é insana.

Engenharia duvidosa
Enquanto o IBGE informa que a densidade demográfica populacional de salvador é de apenas 3.859,35 hab/Km² - uma densidade demográfica europeia, mascarando a gritante realidade, o poder público segue com medidas esdrúxulas de engenharia de tráfego, espalhando semáforos que batem recordes mundiais de tempo de espera (mais atrapalhando que ajudando) - o grande emaranhado do Iguatemi está aí para provar, onde uma tal “LIP”, ao contrário de “ligar” com fluidez, interrompe, corta o fluxo do transito por um tempo absurdo provocando engarrafamentos gigantescos que se propagam por toda a cidade, gastando dinheiro desnecessário com “banhos de luz” em vias públicas já bem iluminadas (achando que está fazendo grande coisa), fazendo o viaduto Nelson Dahia surgir do meio de uma avenida para, no final, mergulhar formando uma incômoda “tesoura”, fazendo um “puxadinho” aqui outro ali, colocando quebra-molas e semáforos sem critérios, todas obras pequenas, meros trabalhos “de maquiagem”, intervenções equivocadas, insignificantes, que só trazem benefício imediato aos empreiteiros lobistas e às vaidades e projetos pessoais do gestor de pouca visão.
De tempos em tempos aparece um gênio na engenharia de tráfego da prefeitura e, em exercícios duvidosos de engenharia de tráfego, inventa uma solução mirabolante como a tal “faixa exclusiva para ônibus”, a ser simplesmente subtraída de vias já congestionadas, mostrando um total pouco caso com os fundamentos técnicos que não recomendam isso ou, no mínimo, sem uma discussão aberta com a comunidade – uma faixa exclusiva de ônibus tem que ser construída, acrescentada às vias já existentes. Assim, apareceram, repentinamente, quase que da noite para o dia, em toda a extensão das avenidas e ruas da cidade, faixas brancas com barrotes sonorizadores que até hoje não funcionaram e que no atual modelo de trânsito nunca funcionarão – a não ser na conta bancária da empreiteira que as colocou e na de quem as autorizou. Para a cidade, o dinheiro gasto com essa maluquice foi todo jogado pelo ralo.

A mobilidade urbana pede passagem
As grandes cidades do mundo, em geral, têm o seu crescimento bem estruturado, bem planejado, onde as obras viárias se antecipam, estabelecendo vetores de crescimento no seu entorno. Vias estruturantes podem sofrer alterações ao longo do tempo, mas são projetadas para terem capacidade de suportar o natural crescimento da cidade, chegam antes da demanda e quando esta surge, vem de maneira controlada, planejada. Há muito tempo que a cidade não vê obras estruturantes surgirem para permitir o crescimento ordenado da cidade. De 1980 para cá houve uma redução drástica de investimentos em infraestrutura viária. As últimas obras foram a Av. Luiz Eduardo Magalhães, com apenas 4,5 km, que em pouco tempo ficou completamente saturada nos horários de pico, e mais recentemente o complexo da rótula do abacaxi, a se integrar com a futura Via Expressa Baía de Todos os Santos, que deverá ligar a BR-324 ao Porto de Salvador – por onde, ninguém sabe ainda. A avenida Paralela é o exemplo de uma obra que ao longo do tempo teve essa função desvirtuada pela política populista dos sucessivos governos que permitiram a ocupação e o uso do solo urbano no seu entorno de maneira errada.
As avenidas de vale, excelentes canais de tráfego idealizadas no início da década de 40, com características estruturantes, já estão esgotadas, engarrafando por qualquer motivo e a qualquer hora. Está faltando aparecer uma prefeitura com coragem e disposição para empreender um programa de grandes obras estruturantes, aproveitando o grande espaço que existe sob os morros da cidade para abrir túneis. Poucas são as cidades que têm essa possibilidade de melhorar a sua malha viária por baixo do chão, atravessando morros, coisa fácil para a engenharia moderna. Algumas avenidas de vale, já irremediavelmente saturadas, poderiam ser interligadas por túneis e elevados a outras avenidas, dando-lhes vazão, com excelentes resultados.

“Poucas são as cidades que têm essas possibilidades de fazer crescer
a sua malha viária por baixo do chão.”


Os pontos de estrangulamento hoje existentes no trânsito de Salvador, como o encontro de vias existente na área frontal ao Iguatemi ou o cruzamento da Av. Lucaia com a Vasco da Gama (antiga Coca-Cola) ou, no Rio Vermelho - o gigantesco gargalo que é o Largo da Mariquita, ou ainda a esburacada Av. San Martin, a caótica rótula do Largo do Tanque, a Av. Tancredo Neves e o seu acesso ao Stiep, o cruzamento da Av. Paulo VI com a Av. Antonio Carlos Magalhães, o encontro das avenidas Juracy Magalhães Júnior e Antonio Carlos Magalhães que já devia ter outro formato, todos eles são possíveis de serem eliminados com a construção de conjuntos de elevados, rótulas, trevos e túneis, juntamente com a requalificação das vias de conexão e acesso já existentes.
Quando se fala em metrô, BRT, VLT, a população de Salvador é assombrada pelos fantasmas que até hoje vagam pela cidade, nos escombros do natimorto “bonde moderno” – antigo nome do VLT da década de 80, ou do metrô de apenas 6 km que há doze anos se arrasta numa construção infindável e que corre o risco de sobrar apenas como um “pedaço de metrô”, perdido, isolado, desconectado do outro “modal” que já surge na cabeça dos empreiteiros lobistas, prontos para pegar carona no projeto de transporte público para a Copa de 2016, seja ele qual for, mas que melhor atenda aos seus interesses.
Mas, o fato é que não dá mais para imaginar que a mobilidade urbana na cidade seja satisfatória num futuro próximo, sem que o foco primordial seja voltado para uma eficiente e inteligente engenharia de tráfego. Isso significa investimento maciço na infraestrutura viária, que envolva desde a implantação definitiva de um metrô com boa capilaridade, o que não é apenas uma opção mas uma necessidade fundamental, até a abertura de novas vias estruturantes de integração e distribuição que permitam um fluxo livre para os veículos em qualquer trajeto, juntamente com a requalificação dos trens do subúrbio, a construção da ponte Salvador/Itaparica interligada à Via Expressa, ciclovias planejadas, colocação de passarelas em lugar de semáforos, tudo voltado para melhor distribuir e equilibrar os fluxos de tráfego da rede viária da cidade.

A verticalização descontrolada da cidade
Para completar esse quadro dantesco, contrariando a lógica e o bom senso, levada por uma gana voraz de arrecadar IPTU de tarifa alta, a prefeitura segue quebrando todos os princípios técnicos no controle do uso e ocupação do solo urbano, autorizando a construção de megaprojetos habitacionais em bairros cujos acessos já estão pra lá de saturados. Os moradores de Brotas, Pituba, Graça, Ondina, Barra – e outros “bairros nobres”, sofrem com engarrafamentos a qualquer hora do dia, por causa da absurda verticalização, que dificulta o trânsito e o acesso àquelas áreas urbanas.
Os enormes condomínios verticais que são construídos de qualquer maneira, sem limites, são ao mesmo tempo causa e efeito de uma especulação imobiliária predatória cujo resultado mais perceptível, mais imediato, é o insuportável congestionamento do trânsito em toda a cidade. Precisamos deixar de ser reféns da especulação imobiliária que define a instalação de equipamentos, o traçado das vias e a construção de imóveis com o inevitável resultado de ruas estreitas, calçadas apertadas, trânsito esgotado. O adensamento populacional desmedido causa um significativo aumento da temperatura média da cidade, e certamente, em futuro próximo provocará resultados ainda mais nefastos que devem ser analisados urgentemente no âmbito do PDDU. A verticalização irrefreada é uma das ações equivocadas da prefeitura de Salvador. Com isso, o cidadão soteropolitano vem sofrendo um acentuado processo de degradação da sua qualidade de vida.
Salvador tem pequena área territorial, em torno de 330 km2, com pouco espaço para crescer, portanto. Verticalizar, crescer “para cima”, é a mais fácil de suas poucas opções de crescimento, e para que isso possa acontecer, o poder público tem que atuar como severo fiscal, rigoroso controlador. Se a verticalização na cidade é inevitável em determinadas áreas, a verdade é que ela é extremamente dependente da melhoria da infraestrutura de transporte público; quanto mais amplitude e capilaridade tiver o transporte urbano, mais se poderá permitir a verticalização, pois com as atuais condições do transporte público e da malha viária, isso não é possível.
Ao invés de estimular tais empreendimentos imobiliários, o poder público deveria sim, inibi-los nos bairros que já têm alta densidade demográfica e/ou péssimas condições de acesso, rede viária e transporte público deficiente e, por meio de mecanismos legais e fiscais de incentivo, direcioná-los para áreas mais afastadas com menor densidade demográfica, que seriam dotadas de uma melhor infraestrutura de acesso e transporte.
Salvador jamais conviveu com o mínimo processo de planejamento de trânsito, mobilidade urbana e uso do solo. A cidade já não aguenta mais; está na hora de os gestores públicos pararem de pensar de maneira isolada e de olhar somente para o próprio umbigo, de olho nos resultados imediatos traduzidos em votos.
Para o professor de sociologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Joviniano Neto, torna-se mais que urgente se repensar as políticas de ocupação do solo. “É planejar agora ou perder a cidade para sempre”, afirma ele.

Orlando Amado de Freitas Filho é analista do Depec - SSA Repre.



e-mail orlando.amado@bcb.gov.br

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

E-book pode ter final triste para autores independentes


Por Jeffrey A. Trachtenberg | The Wall Street Journal

A publicação independente de livros hoje em dia tem cada vez mais desfechos completamente diferentes.

Há autores já conhecidos, como Nyree Belleville, que diz que ganhou meio milhão de dólares nos últimos 18 meses vendendo diretamente os livros, em vez de usar uma editora.

Mas também há estreantes como Eve Yohalem. Mais de um mês depois de publicar por conta própria o primeiro livro, ela só conseguiu faturar US$ 100 - depois de gastar US$ 3.400. Mas ela diz que não está com pressa.

A publicação independente existe há décadas. Mas graças à tecnologia digital e especialmente ao nascimento dos livros eletrônicos, o número de lançamentos de títulos independentes subiu 160% em 2010, para 133.036, ante 51.237 no ano anterior, calcula a R.R. Bowker, que monitora o segmento editorial.

A Amazon. com Inc. alimentou esse crescimento quando ofereceu aos autores independentes até 70% da receita gerada pela venda dos livros digitais, a depender do preço final. Já as editoras tradicionais normalmente pagam 25% da receita líquida no segmento digital, e até menos para a venda de livros impressos.

Para alguns autores conhecidos, porcentagens como essas podem tornar a publicação independente um golaço. Belleville, por exemplo, uma escritora experiente de livros românticos que passou sete anos usando o pseudônimo Bella Andre e um ano como Lucy Kevin, publicou por conta própria seu primeiro e-book em abril de 2010. Desde então ela já conseguiu vender 265.000 cópias de seus dez títulos publicados de maneira independente, a maioria com preços que vão de US$ 2,99 a US$ 5,99. A quantia total obtida por ela com esses dez títulos publicados desde abril do ano passado: mais de US$ 500.000 depois das despesas, diz ela. Antes o máximo que ela conseguiu faturar com um livro foi US$ 33.000.

Darcie Chan, escritora indepentende voltada para o público feminino, assistiu à ascensão de seu novo livro, "The Mill River Recluse", para o quinto lugar da lista do The Wall Street Journal de mais vendidos em formato digital na semana encerrada em 23 de outubro. Chan cobra apenas US$ 0,99 por cópia digital do livro, sobre uma viúva cheia de segredos que mora no Estado de Vermont. Ela diz que já vendeu "centenas de milhares" de cópias desde que começou a oferecê-lo na Amazon, em maio. O livro, que também está disponível na Barnes & Noble Inc. e em outros varejistas na internet, tinha sido rejeitado por algumas das maiores editoras americanas.

"Minha intenção era divulgar gradualmente meu nome como escritora, porque quando o livro foi rejeitado uma das coisas que ouvi foi que ninguém me conhecia", diz Chan. "Jamais esperei que isso fosse acontecer", diz ela sobre as vendas na internet.

Chan diz que o livro ganhou destaque em vários sites que vendem livros digitais para o aparelho Kindle, da Amazon, e recomendam e-books para os leitores. O livro atingiu em agosto a lista dos dez mais vendidos da loja Kindle e no fim de outubro chegou à sexta colocação. Ela pagou um site para fazer a resenha do livro, algo que ela acha que pode ter contribuído para as vendas. E ela ainda realizou algumas "campanhas publicitárias baratas na web" que também ajudaram a divulgar o livro aos leitores. Chan, que se formou em direito, disse que o livro agora será reenviado às grandes editoras que o rejeitaram no início.

Mas também há escritores como Erik Kjerland. Ele publicou por contra própria quatro romances e um livro sobre edição independente ano passado, sob o pseudônimo Derek J. Canyon. Seu lucro, de cerca de US$ 5.000, com faturamento de cerca de US$ 10.000, é melhor do que ele esperava, mas não foi o suficiente para ele abandonar seu trabalho de redator de manuais técnicos.

A dúvida que intriga mais os pretendentes a escritor independente não é se eles serão considerados párias literários, mas como publicar e quanto custará. Apenas conseguir a atenção dos leitores é já um desafio enorme, apesar de que os e-books podem ficar disponíveis indefinidamente.

"Uma das maiores diferenças entre o e-book e o livro impresso é o ciclo de vendas", diz Yohalem. "É quase o contrário. Um comprador de uma rede de livrarias toma uma decisão até seis meses antes de o livro ser publicado, e depois ele terá não mais que seis meses na prateleira. Depois disso seu ciclo de vendas se encerra. Mas com os e-books é o contrário. Geralmente leva de seis a nove meses para o livro decolar e você nunca deixa de vendê-lo."

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O futuro da ciência está na colaboração


Por Michael Nielsen | Especial para o The Wall Street Journal

Um matemático da Universidade de Cambridge chamado Tim Gowers decidiu em janeiro de 2009 usar seu blog para realizar um experimento social inusitado. Ele escolheu um problema matemático difícil e tentou resolvê-lo abertamente, usando o blog para apresentar suas ideias e como estava progredindo. Ele convidou todo mundo para contribuir com ideias, na esperança de que várias mentes unidas seriam mais poderosas que uma. Ele chamou o experimento de Projeto Polímata ("Polymath Project").

Quinze minutos depois de Gowers abrir o blog para discussão, um matemático húngaro-canadense publicou um comentário. Quinze minutos depois, um professor de matemática do ensino médio dos Estados Unidos entrou na conversa. Três minutos depois disso, o matemático Terence Tao, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, também comentou. A discussão pegou fogo e em apenas seis semanas o problema foi solucionado.

Embora tenham surgido outros desafios e os colaboradores dessa rede nem sempre tenham encontrado todas as soluções, eles conseguiram criar uma nova abordagem para solucionar problemas. O trabalho deles é um exemplo das experiências com ciência colaborativa que estão sendo feitas para estudar desde de galáxias até dinossauros.

Esses projetos usam a internet como ferramenta cognitiva para amplificar a inteligência coletiva. Essas ferramentas são um meio de conectar as pessoas certas com os problemas certos na hora certa, ativando o que é um conhecimento apenas latente.

A colaboração em rede tem o potencial de acelerar extraordinariamente o número de descobertas da ciência como um todo. É provável que assistiremos a uma mudança mais fundamental na pesquisa científica nas próximas décadas do que a ocorrida nos últimos três séculos.

Mas há obstáculos grandes para alcançar essa meta. Embora pareça natural que os cientistas adotem essas novas ferramentas de descobrimento, na verdade eles têm demonstrado uma inibição surpreendente. Iniciativas como o Projeto Polímata continuam sendo exceção, não regra.

Considere a simples ideia de compartilhar dados científicos on-line. O melhor exemplo disso é o projeto do genoma humano, cujos dados podem ser baixados por qualquer um. Quando se lê no noticiário que um certo gene foi associado a alguma doença, é praticamente certo que é uma descoberta possibilitada pela política do projeto de abrir os dados.

Apesar do valor enorme de divulgar abertamente os dados, a maioria dos laboratórios não faz um esforço sistemático para compartilhar suas informações com outros cientistas. Como me disse um biólogo, ele estava "sentado no genoma" de uma nova espécie inteira há mais de um ano. Uma espécie inteira! Imagine as descobertas cruciais que outros cientistas poderiam ter feito se esse genoma tivesse sido carregado num banco de dados aberto.

Por que os cientistas não gostam de compartilhar?

Se você é um cientista buscando um emprego ou financiamento de pesquisa, o maior fator para determinar seu sucesso será o número de publicações científicas que já conseguiu. Se o seu histórico for brilhante, você se dará bem. Se não for, terá problemas. Então você dedica seu cotidiano de trabalho à produção de artigos para revistas acadêmicas.

Mesmo que ache pessoalmente que seria muito melhor para a ciência como um todo se você organizasse e compartilhasse seus dados na internet, é um tempo que o afasta do "verdadeiro" trabalho de escrever os artigos. Compartilhar dados não é algo a que seus colegas vão dar crédito, exceto em poucas áreas.

Há outras áreas em que os cientistas ainda estão atrasados no uso das ferramentas on-line. Um exemplo são os "wikis" criadas por pioneiros corajosos em assuntos como computação quântica, teoria das cordas e genética (um wiki permite o compartilhamento e edição colaborativa de um conjunto de informações interligadas, e o site Wikipedia é o mais conhecido deles).

Os wikis especializados podem funcionar como obras de referência atualizadas sobre as pesquisas mais recentes de um campo, como se fossem livros didáticos que evoluem ultrarrápido. Eles podem incluir descrições de problemas científicos importantes que ainda não foram resolvidos e podem servir de ferramenta para encontrar soluções.

Mas a maioria desses wikis não deu certo. Eles têm o mesmo problema que o compartilhamento de dados: mesmo se os cientistas acreditarem no valor da colaboração, sabem que escrever um único artigo medíocre fará muito mais por suas carreiras. O incentivo está completamente errado.

Para a ciência em rede alcançar seu potencial, os cientistas precisam abraçar e recompensar o compartilhamento aberto de todos os conhecimentos científicos, não só o publicado nas revistas acadêmicas tradicionais. A ciência em rede precisa ser aberta.

Nielsen é um dos pioneiros da computação quântica e escreveu o livro "Reinventing Discovery: The New Era of Networked Science" (Reinventando a Descoberta: A Nova Era da Ciência em Rede, sem tradução para o português), de onde esse texto foi adaptado.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Os doidos sábios e os sábios doidos



Como sempre, o ronco da rua parece desconexo, coisa de quem persegue causas perdidas



ELIO GASPARI - FSP 19/10

O ZUCCOTTI Park, a dois quarteirões de Wall Street, é pouco menor que um campo de futebol. Há três semanas, quem passava por lá, via a fauna das causas perdidas.
Colchões no chão, batuque e até uma vuvuzela. Um cabeludo flanava no seu skate e uma jovem vestia camiseta e calcinha de flores (um biquíni de vovó, se comparado aos fios dentais). Havia uma estranha ordem naquele caos. Os canteiros de flores, intocados, e jovens (uma de luvas) recolhiam o lixo.
Os doidos do "Ocupe Wall Street" espalharam-se por 82 países, de Roma a Taiwan. Em todos os lugares, a pergunta é uma só: qual é a agenda dessa gente?
Nesta semana o ilustrador Barry Blitt (aquele que durante a campanha eleitoral de 2008 desenhou um Obama muçulmano e Michelle com uma metralhadora a tiracolo) matou a charada na capa da revista "The New Yorker". Cinco banqueiros de cartola empunham cartazes, e um deles pede: "Deixe as coisas precisamente como estão".
E elas estão assim: com o país tecnicamente fora da recessão, a taxa de desemprego americana está em 9%, a maior desde os anos 40, excetuado um breve repique nos anos 80. Os lucros das corporações estão no maior nível dos últimos 70 anos, mas os salários bateram no mais baixo patamar desde 1960.
Todos os indicadores de renda do andar de cima vão bem, mas querem mandar a conta da ruína para o andar de baixo, cortando políticas sociais, tanto nos Estados Unidos como na Europa.
A patuleia do parque é o novo personagem da crise. Não tem agenda? Em 1967, numa marcha contra a Guerra do Vietnã, o poeta Allen Guinsberg propôs que as energias dos manifestantes fossem concentradas para fazer levitar o prédio do Pentágono. O Pentágono não levitou, mas o presidente Lyndon Johnson desistiu de concorrer à reeleição. Em 1989, os tchecos manifestavam-se chacoalhando chaveiros.
Nem os doidos do parque acham que o companheiro Obama desistirá da reeleição, mas ele parece não ter entendido o ronco da rua.
No domingo, inaugurando o monumento a Martin Luther King (outro doido), disse que não se deve satanizar "todos aqueles que trabalham" em Wall Street. Blá-blá-blá, pois ninguém está protestando contra todos os operadores do papelório, mas contra o que a turma do papelório fez à economia mundial, emprestando dinheiro a quem não podia pagar, na certeza de que a parolagem do "risco sistêmico" impediria que fossem à garra. Nos anos 80, salvou-se a ciranda dos sábios da banca quebrando-se a América Latina, inclusive o Brasil.
Agora os Estados Unidos e a Europa estão provando o velho veneno e não gostam dos seus efeitos. À época, a mágica foi praticada por Paul Volcker, o presidente do Banco Central americano.
Em 2008, aos 81 anos, ele assessorava Obama. Não havia por que passar a conta adiante, e ele propunha que se baixasse o chanfalho na banca. A certa altura, tratava-se de deixar que o Citibank quebrasse. Obama vacilou, Volcker foi-se embora, e o resultado está aí. A sabedoria dos sábios tornou-se maluquice e entraram em cena os doidos, como sábios.




Serviço: saiu nos Estados Unidos um excelente livro expondo as brigas e a falta de rumo da Casa Branca durante o governo Obama. Chama-se "Confidence Men" ("Homens de Confiança - Wall Street, Washington e a Educação de um Presidente"). Seu autor é o premiado jornalista Ron Suskind. O e-book, em inglês, custa US$ 12,99.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Intervalo sem colocar poesias

Eventuais leitores deste blog, desde final de 2010 não coloco poesias aqui. Tem uma explicação: fiz uma traqueostomia e não conseguia mais usar meu iphone, que de onde postava as poesias. Desde então estou deitado. Agora disponho de um computador muito mais fácil de operar com os olhos, o My Tobii, tecnologia sueca. Demorei um pouco para dominar todos os recursos (na verdade, não dominei). A partir desta semana voltarei a ativa. agradeço meus leitores.

Desenvolvimento e ciências humanas



Por Marcio Pochmann - Valor 13/10


O Renascentismo Europeu, ao final do século XIV, inaugurou uma nova fase de entendimentos acerca da natureza do homem e do funcionamento do mundo, o que concedeu às ciências humanas um valor estratégico substancial. Por meio de um conjunto filosófico comum e acompanhado do método de aprendizado fundamentado na razão e evidência empírica, as humanidades terminaram por subverter a perspectiva espiritualista predominante até então no mundo medieval.

Com o desafio estabelecido de compreender a realidade em sua totalidade, floresceram as universidades e a pesquisa comprometidas com o papel central de organização, produção e difusão técnico-científico de caráter universal. Concomitantemente às revoluções industriais dos séculos XVIII e XIX, as ciências, sobretudo as aplicadas, foram incorporadas às exigências do padrão de desenvolvimento urbano-industrial. Ou seja, foram incorporadas à vida nas cidades, uma vida constituída pela materialidade do consumismo decorrente da produção de bens e serviços em escala cada vez mais global.

Para isso, a partilha do conhecimento em múltiplas especializações se fez crescente, gerando fragmentação do ensino e pesquisa compatível com os requisitos de maior produtividade técnico-científica exigidos por distintos setores de atividade econômica. A aplicação recorrente do conhecimento técnico-científico à produção material de bens e serviços modernos tornou possível agregar valor ao processo de acumulação de capital e impor progresso material inimaginável às sociedades urbano-industriais.

A perspectiva de crescente especialização da produção técnico-científica, que até então se encontrava encastelada em contidos centros de pesquisas, possibilitou a emergência de novos laboratórios e investimentos em pesquisa inseridos nos plano de negócios empresariais. Assim, a associação entre diversos centros difusores das ciências humanas - públicos e privados - fortaleceu gradualmente a crença de que a mercantilização do trabalho imaterial deveria atender às exigências do padrão de desenvolvimento urbano-industrial.

Tudo isso, contudo, não deixou de produzir colateralmente o esvaziamento de uma unidade filosófica comum que concedia às ciências humanas o valor estratégico no entendimento totalizante da realidade do mundo e do homem. Certa cegueira situacional passou a acompanhar o desenvolvimento fragmentado das ciências humanas, com inegáveis graus de alienação na produção do conhecimento.

Tanto assim que a partir dos últimos 25 anos do século XX, a produção do conhecimento, anteriormente centrado nas universidades tradicionais, foi sendo substituída pelas chamadas universidades corporativas, responsáveis por funções como a formação de quadros e capacitação permanentes dos trabalhadores nas grandes empresas. Nos dias de hoje, somente as 500 maiores corporações transnacionais respondem por cerca de 4/5 de toda a produção global de investimentos em ciência e tecnologia. Em vários países do mundo, a quantidade de universidades corporativas supera as universidades tradicionais.

A reação radicalizada do sistema universitário tradicional foi o de se comprometer com a maior elevação da produtividade nas ciências, especialmente por meio do aprofundamento das especializações, o que a dispensou de vez de qualquer compromisso com a existência de algum corpo filosófico integrador do entendimento acerca do homem e do mundo. Por conta disso, currículos foram simplificados e esvaziados da identidade comum, enquanto as ciências humanas seguiram aprendizagem desinteressante e descomprometida da referência e aplicação prática na realidade.

No mesmo sentido, as agências públicas de financiamento da pesquisa concentraram-se no fomento setorial e individualizado da produção do conhecimento comprometido fundamentalmente com a perspectiva de elevação da produtividade sistêmica das ciências humanas. Apostaram-se também na competição inter e intrauniversitária movida pelo uso de tecnologias das competências, o que rompeu com a fronteira nacional dos conteúdos curriculares. De caráter cada vez mais internacionalizado, as medidas nacionais de avaliação e monitoramento do ensino e pesquisa subordinam-se à coordenação exógena e descolada dos interesses nacionais. Tanto assim que não tem sido incomum conceder à produção técnico-científica valorização superior com publicação externa e descontextualizada do que aquela comprometida com as exigências da realidade nacional.

Esse modelo internalizado nos países não-desenvolvidos não reduziu o fosso que separa a produção técnico-científica das exigências associadas ao setor produtivo. Da mesma forma, o movimento de internacionalização do parque produtivo tornou mais interessante a importação da tecnologia dominante na mesma medida em que empresas multinacionais realizam concentradamente em suas matrizes os maiores esforços de desenvolvimento da pesquisa em ciência e tecnologia. É isso que faz com que somente 10% dos 11 mil doutores formados anualmente no Brasil possam se estabelecer nos centros de pesquisa vinculados ao setor produtivo, bem ao contrário de outros países.

A recuperação da unidade filosófica comum nas ciências humanas e o seu engajamento no entendimento do mundo e do homem atual constituem peças fundamentais de uma estratégia de superação do atraso subdesenvolvimentista. Do contrário, produção do conhecimento e exigências do padrão de desenvolvimento poderão continuar a andar em sentido distinto.

Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O tá bom venha, tá bom vá

Por Acoelhof

Conheci Gerôncio há muitos anos. Ele mudou-se, foi morar fora e perdi o contato. Ainda me lembro de uma frase que Gerôncio costumava dizer: “O homem deve se casar, mas a mulher não”. De início, pensei que ele estivesse incentivando o casamento gay. Depois, percebi que Gerôncio queria dizer que o casamento só era bom mesmo para o homem. Na visão dele, até casamentos ruins eram bons. Embora dissesse que o casamento era bom só para o homem, Gerôncio nunca se casou. Chegava a mudar de calçada quando avistava um cartório ou uma igreja. E, muito pior, chegava ao ponto de desejar a mulher do próximo.

Gerôncio vivia no “tá bom venha, tá bom vá”. Se uma mulher quisesse viver com ele, a resposta já estava pronta: “Tá bom venha”. Direto, nem a vírgula ele dizia. Quando a chama se apagava, a mulher se encarregava de dizer adeus. E ele repetia: “Tá bom vá”. Assim Gerôncio vivia, no “tá bom venha, tá bom vá”, durassem os relacionamentos anos ou meses.

Recentemente, encontrei Jocácio, amigo em comum, e perguntei por Gerôncio:– Da última vez que soube, ele já estava no sétimo “tá bom venha, tá bom vá”, como costuma dizer. Mas parece que agora ele acertou, já tem dois filhos. Está morando no Rio. Tenho o telefone dele. Se quiser ligar...

Liguei. Além de não ver Gerôncio há muito tempo, estava curioso para saber se ele ainda estava no sétimo.

– Como é que vai, Gerôncio?! Faz tempo que a gente não se fala! Encontrei Jocácio, foi ele quem me deu teu telefone.

– Rapaz, estou com saudade de Fortaleza! O Jocácio está casado com a mesma mulher há quase 30 anos e eu já estou no oitavo “tá bom venha, tá bom vá”.

– Não é o sétimo, Gerôncio?

– Era até a semana passada. Quer dizer, ainda são sete. A do terceiro “tá bom venha, tá bom vá” está morando também aqui no Rio. Por acaso, me encontrei com ela à noite no Leblon. Fiquei pensando nos bons tempos... Perguntei se ela queria recomeçar. Ela respondeu: “Tá bom venha.”

– Gerôncio, para com isso! Jocácio me disse que você até filhos já tem.

– Pois é, depois que os meninos nasceram a coisa melhorou por um lado, mas piorou por outro.

A maionese desandou, a tampa da panela saltou e a chama se apagou. Por causa dos meninos, ela não iria sair de casa...

– Gerôncio, pensa nos meninos!

– Peguei a escova de dente, algumas roupas, arrumei a mala. Mas pensei nos meninos. Dei meia-volta, larguei a mala num canto e quis ficar.

Ela apenas disse: “Não, tá bom, vá!”

acoelhof – Fortaleza (acoelhof@gmail.com)

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Talentos da Maturidade


Amigas e amigos, colegas e colegas, mininas e minus

Estou inscrito no Talentos da Maturidade - é, a idade chega, né? - e preciso de seu voto.

Basta clicar aqui

Estou concorrendo com um poema. Se gostarem, basta dar uma nota clicando na estrela que porventura achem que mereço.

Vão lá, deixem um comentário. Espero por vocês.

Grande abraço,

Fernando Gurgel Filho

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Jornal da poesia


*Erdanet Via Alfredo Mendonca Condé

No caminho com Maiakóvski, que não é de Maiakóvski, mas teria parentesco com Martin Niemöller, um pastor luterano, mas é de Eduardo Alves da Costa

A primeira vez que li o belo texto de Eduardo Alves da Costa foi numa gramática da língua portuguesa. Gostei. Muito! Copiei-o imediatamente no Jornal de Poesia. O que se conhece de Internet e livros didáticos é apenas um fragmento, mas tão forte, tão belo e independente que pode ser lido escoteiro como se fora um poema independente que, a rigor, é.

Eis o fragmento de Eduardo Alves da Costa:

No caminho com Maiakóvski

"[...]
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
[...]"

Prometo-lhes publicar o poema inteiro. Minha amiga Maria do Carmo Ferreira, acho que ela o tem. Agora lhes falo de um outro poema, a rigor um trecho de sermão, ou prédica, de um pastor luterano, alemão, da época do nazismo, Martin Niemöller, ao que parece de 1933 (o poema). Encontrei, via google, os seguintes textos:

1º) Zuerst kamen sie für die Kommunisten, und ich war nicht Kommunist, und da hab ich nichts gesagt und nichts getan, und dann kamen sie für die Gewerkschaftler, und ich war kein Gewerkschaftler,und sie kamen für die Sozialdemokraten, und sie kamen für die Katholiken, und sie kamen für die Juden, und ich war keiner von denen, und dann kamen sie für mich, und da war keiner mehr, der schreien konnte.

2º) Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para reclamar.

3º) Quand ils sont venus chercher les communistes, je n'ai pas bougé : je ne suis pas communiste. Alors, ils sont venus pour les syndicalistes et je n'étais pas syndicaliste; Et ils vinrent pour les Sociaux-Démocrates, et ils vinrent pour les catholiques, et ils vinrent pour les juifs, je n'étais aucun de ceux-là; Quand ils sont venus pour moi, il n'y avait plus personne pour faire le cercueil.

4º) First they came for the Communists, and I didn't speak up, because I wasn't a Communist. Then they came for the Jews, and I didn't speak up, because I wasn't a Jew. Then they came for the Catholics, and I didn't speak up, because I was a Protestant. Then they came for me, and by that time there was no one left to speak up for me.

Não entendo que o belíssimo poema de Eduardo Alves da Costa seja plágio de maneira alguma. Da mesma forma que A raposa e as uvas, de La Fontaine, não é plágio de Fedro, nem este plagia a Esopo. Todos visitam o tema, inclusive eu, em Psi, a Penúltima.
Como é que diz o velho Esclesiastes? Não há nada de novo sob o Sol, coisa assim. Parece que não há mesmo. O importante, certamente, é a recriação, a re-escritura, atualizando o tema ao hic et nunc - ao aqui e agora.

Consta que Brecht também teria visitado o texto de Niemöller. Maiakóvski, não. Morto Maiakóvski em 1930, é até admissível que seja o contrário, Niemöller é que teria visitado o poeta russo. Mas, a rigor, toda a confusão com o nome de Maiakóvski, no poema de Eduardo Alves da Costa, decorreu, ao que parece, do título do poema - No caminho com Maiakóvski -, que é também o título do livro em que foi publicado. Em suma, nem o russo visitou o alemão, nem o alemão teria visitado o russo. E Brecht? Estou procurando. Quem souber, por favor!

Há este fragmento que guarda um certo parentesco:

"Nós vos pedimos com insistência:
Nunca digam - Isso é natural
Diante dos acontecimentos de cada dia,
Numa época em que corre o sangue
Em que o arbitrário tem força de lei,
Em que a humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é natural
A fim de que nada passe por imutável."

Bastante no rumo, não?
O poeta Eduardo Alves da Costa garante que Maiakóvski nada tem a ver com o tema, assim noticia a Folha de São Paulo, edição de 20.9.2003, na íntegra:

Um Maiakóvski no caminho

Foi resolvida graças à novela das oito uma confusão de 30 anos. Escrito nos anos 60 pelo poeta fluminense Eduardo Alves da Costa, 67, o poema "No Caminho, com Maiakóvski" era (quase) sempre creditado ao russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930).

Em "Mulheres Apaixonadas", Helena (Christiane Torloni) leu um trecho do poema, dando o crédito correto. Foi o suficiente para reavivar a polêmica -resolvida dois capítulos depois, em que a autoria de Costa foi reafirmada- e, de quebra, fazer surgir uma proposta de reeditar o poema, para aproveitar a exposição no horário nobre.
Livro combinado, a noite de autógrafos será na novela. "Pedi que apresse e me mande até o dia 10. Quero lançar aqui", diz Manoel Carlos, autor de "Mulheres". Eduardo Alves da Costa falou à coluna:

Folha - Você se arrepende de ter posto Maiakóvski no título?

Eduardo Alves da Costa - De maneira nenhuma! Tanto que vou usar o mesmo título para o livro que sai agora.

Folha - Durante mais de 30 anos acreditaram que o poema era dele. Isso não o incomoda?

Eduardo Alves da Costa - Era uma enxurrada muito grande. Saiu em jornais com crédito para Maiakóvski. Fizeram até camisetas na época das Diretas-Já. Virou símbolo da luta contra o regime militar.

Folha - Como surgiu o engano?

Eduardo Alves da Costa -O poema saiu em jornais universitários, nos anos 70. O psicanalista Roberto Freire incluiu em um livro dele e deu crédito ao russo e me colocou como tradutor. Mas já encomendei da França a obra completa do Maiakóvski. Quando alguém me questionar, entrego os cinco volumes e mando achar o poema lá.

"Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada"

Trecho do poema de Eduardo Alves da Costa atribuído ao russo Vladimir Maiakóvski.

Clique para mais Eduardo Alves da Costa

Em tempo:

O poema inteiro
[minha amiga Maria do Carmo Ferreira quem mandou. O livro do mesmo nome No caminho com Maiakóvski, está esgotado].

NO CAMINHO COM MAIAKÓVSKI

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne a aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!

Nota do editor: em negrito, o "fragmento" que corre o mundo, belíssimo, desse poema de Eduardo Alves da Costa.