quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Os doidos sábios e os sábios doidos



Como sempre, o ronco da rua parece desconexo, coisa de quem persegue causas perdidas



ELIO GASPARI - FSP 19/10

O ZUCCOTTI Park, a dois quarteirões de Wall Street, é pouco menor que um campo de futebol. Há três semanas, quem passava por lá, via a fauna das causas perdidas.
Colchões no chão, batuque e até uma vuvuzela. Um cabeludo flanava no seu skate e uma jovem vestia camiseta e calcinha de flores (um biquíni de vovó, se comparado aos fios dentais). Havia uma estranha ordem naquele caos. Os canteiros de flores, intocados, e jovens (uma de luvas) recolhiam o lixo.
Os doidos do "Ocupe Wall Street" espalharam-se por 82 países, de Roma a Taiwan. Em todos os lugares, a pergunta é uma só: qual é a agenda dessa gente?
Nesta semana o ilustrador Barry Blitt (aquele que durante a campanha eleitoral de 2008 desenhou um Obama muçulmano e Michelle com uma metralhadora a tiracolo) matou a charada na capa da revista "The New Yorker". Cinco banqueiros de cartola empunham cartazes, e um deles pede: "Deixe as coisas precisamente como estão".
E elas estão assim: com o país tecnicamente fora da recessão, a taxa de desemprego americana está em 9%, a maior desde os anos 40, excetuado um breve repique nos anos 80. Os lucros das corporações estão no maior nível dos últimos 70 anos, mas os salários bateram no mais baixo patamar desde 1960.
Todos os indicadores de renda do andar de cima vão bem, mas querem mandar a conta da ruína para o andar de baixo, cortando políticas sociais, tanto nos Estados Unidos como na Europa.
A patuleia do parque é o novo personagem da crise. Não tem agenda? Em 1967, numa marcha contra a Guerra do Vietnã, o poeta Allen Guinsberg propôs que as energias dos manifestantes fossem concentradas para fazer levitar o prédio do Pentágono. O Pentágono não levitou, mas o presidente Lyndon Johnson desistiu de concorrer à reeleição. Em 1989, os tchecos manifestavam-se chacoalhando chaveiros.
Nem os doidos do parque acham que o companheiro Obama desistirá da reeleição, mas ele parece não ter entendido o ronco da rua.
No domingo, inaugurando o monumento a Martin Luther King (outro doido), disse que não se deve satanizar "todos aqueles que trabalham" em Wall Street. Blá-blá-blá, pois ninguém está protestando contra todos os operadores do papelório, mas contra o que a turma do papelório fez à economia mundial, emprestando dinheiro a quem não podia pagar, na certeza de que a parolagem do "risco sistêmico" impediria que fossem à garra. Nos anos 80, salvou-se a ciranda dos sábios da banca quebrando-se a América Latina, inclusive o Brasil.
Agora os Estados Unidos e a Europa estão provando o velho veneno e não gostam dos seus efeitos. À época, a mágica foi praticada por Paul Volcker, o presidente do Banco Central americano.
Em 2008, aos 81 anos, ele assessorava Obama. Não havia por que passar a conta adiante, e ele propunha que se baixasse o chanfalho na banca. A certa altura, tratava-se de deixar que o Citibank quebrasse. Obama vacilou, Volcker foi-se embora, e o resultado está aí. A sabedoria dos sábios tornou-se maluquice e entraram em cena os doidos, como sábios.




Serviço: saiu nos Estados Unidos um excelente livro expondo as brigas e a falta de rumo da Casa Branca durante o governo Obama. Chama-se "Confidence Men" ("Homens de Confiança - Wall Street, Washington e a Educação de um Presidente"). Seu autor é o premiado jornalista Ron Suskind. O e-book, em inglês, custa US$ 12,99.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Intervalo sem colocar poesias

Eventuais leitores deste blog, desde final de 2010 não coloco poesias aqui. Tem uma explicação: fiz uma traqueostomia e não conseguia mais usar meu iphone, que de onde postava as poesias. Desde então estou deitado. Agora disponho de um computador muito mais fácil de operar com os olhos, o My Tobii, tecnologia sueca. Demorei um pouco para dominar todos os recursos (na verdade, não dominei). A partir desta semana voltarei a ativa. agradeço meus leitores.

Desenvolvimento e ciências humanas



Por Marcio Pochmann - Valor 13/10


O Renascentismo Europeu, ao final do século XIV, inaugurou uma nova fase de entendimentos acerca da natureza do homem e do funcionamento do mundo, o que concedeu às ciências humanas um valor estratégico substancial. Por meio de um conjunto filosófico comum e acompanhado do método de aprendizado fundamentado na razão e evidência empírica, as humanidades terminaram por subverter a perspectiva espiritualista predominante até então no mundo medieval.

Com o desafio estabelecido de compreender a realidade em sua totalidade, floresceram as universidades e a pesquisa comprometidas com o papel central de organização, produção e difusão técnico-científico de caráter universal. Concomitantemente às revoluções industriais dos séculos XVIII e XIX, as ciências, sobretudo as aplicadas, foram incorporadas às exigências do padrão de desenvolvimento urbano-industrial. Ou seja, foram incorporadas à vida nas cidades, uma vida constituída pela materialidade do consumismo decorrente da produção de bens e serviços em escala cada vez mais global.

Para isso, a partilha do conhecimento em múltiplas especializações se fez crescente, gerando fragmentação do ensino e pesquisa compatível com os requisitos de maior produtividade técnico-científica exigidos por distintos setores de atividade econômica. A aplicação recorrente do conhecimento técnico-científico à produção material de bens e serviços modernos tornou possível agregar valor ao processo de acumulação de capital e impor progresso material inimaginável às sociedades urbano-industriais.

A perspectiva de crescente especialização da produção técnico-científica, que até então se encontrava encastelada em contidos centros de pesquisas, possibilitou a emergência de novos laboratórios e investimentos em pesquisa inseridos nos plano de negócios empresariais. Assim, a associação entre diversos centros difusores das ciências humanas - públicos e privados - fortaleceu gradualmente a crença de que a mercantilização do trabalho imaterial deveria atender às exigências do padrão de desenvolvimento urbano-industrial.

Tudo isso, contudo, não deixou de produzir colateralmente o esvaziamento de uma unidade filosófica comum que concedia às ciências humanas o valor estratégico no entendimento totalizante da realidade do mundo e do homem. Certa cegueira situacional passou a acompanhar o desenvolvimento fragmentado das ciências humanas, com inegáveis graus de alienação na produção do conhecimento.

Tanto assim que a partir dos últimos 25 anos do século XX, a produção do conhecimento, anteriormente centrado nas universidades tradicionais, foi sendo substituída pelas chamadas universidades corporativas, responsáveis por funções como a formação de quadros e capacitação permanentes dos trabalhadores nas grandes empresas. Nos dias de hoje, somente as 500 maiores corporações transnacionais respondem por cerca de 4/5 de toda a produção global de investimentos em ciência e tecnologia. Em vários países do mundo, a quantidade de universidades corporativas supera as universidades tradicionais.

A reação radicalizada do sistema universitário tradicional foi o de se comprometer com a maior elevação da produtividade nas ciências, especialmente por meio do aprofundamento das especializações, o que a dispensou de vez de qualquer compromisso com a existência de algum corpo filosófico integrador do entendimento acerca do homem e do mundo. Por conta disso, currículos foram simplificados e esvaziados da identidade comum, enquanto as ciências humanas seguiram aprendizagem desinteressante e descomprometida da referência e aplicação prática na realidade.

No mesmo sentido, as agências públicas de financiamento da pesquisa concentraram-se no fomento setorial e individualizado da produção do conhecimento comprometido fundamentalmente com a perspectiva de elevação da produtividade sistêmica das ciências humanas. Apostaram-se também na competição inter e intrauniversitária movida pelo uso de tecnologias das competências, o que rompeu com a fronteira nacional dos conteúdos curriculares. De caráter cada vez mais internacionalizado, as medidas nacionais de avaliação e monitoramento do ensino e pesquisa subordinam-se à coordenação exógena e descolada dos interesses nacionais. Tanto assim que não tem sido incomum conceder à produção técnico-científica valorização superior com publicação externa e descontextualizada do que aquela comprometida com as exigências da realidade nacional.

Esse modelo internalizado nos países não-desenvolvidos não reduziu o fosso que separa a produção técnico-científica das exigências associadas ao setor produtivo. Da mesma forma, o movimento de internacionalização do parque produtivo tornou mais interessante a importação da tecnologia dominante na mesma medida em que empresas multinacionais realizam concentradamente em suas matrizes os maiores esforços de desenvolvimento da pesquisa em ciência e tecnologia. É isso que faz com que somente 10% dos 11 mil doutores formados anualmente no Brasil possam se estabelecer nos centros de pesquisa vinculados ao setor produtivo, bem ao contrário de outros países.

A recuperação da unidade filosófica comum nas ciências humanas e o seu engajamento no entendimento do mundo e do homem atual constituem peças fundamentais de uma estratégia de superação do atraso subdesenvolvimentista. Do contrário, produção do conhecimento e exigências do padrão de desenvolvimento poderão continuar a andar em sentido distinto.

Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O tá bom venha, tá bom vá

Por Acoelhof

Conheci Gerôncio há muitos anos. Ele mudou-se, foi morar fora e perdi o contato. Ainda me lembro de uma frase que Gerôncio costumava dizer: “O homem deve se casar, mas a mulher não”. De início, pensei que ele estivesse incentivando o casamento gay. Depois, percebi que Gerôncio queria dizer que o casamento só era bom mesmo para o homem. Na visão dele, até casamentos ruins eram bons. Embora dissesse que o casamento era bom só para o homem, Gerôncio nunca se casou. Chegava a mudar de calçada quando avistava um cartório ou uma igreja. E, muito pior, chegava ao ponto de desejar a mulher do próximo.

Gerôncio vivia no “tá bom venha, tá bom vá”. Se uma mulher quisesse viver com ele, a resposta já estava pronta: “Tá bom venha”. Direto, nem a vírgula ele dizia. Quando a chama se apagava, a mulher se encarregava de dizer adeus. E ele repetia: “Tá bom vá”. Assim Gerôncio vivia, no “tá bom venha, tá bom vá”, durassem os relacionamentos anos ou meses.

Recentemente, encontrei Jocácio, amigo em comum, e perguntei por Gerôncio:– Da última vez que soube, ele já estava no sétimo “tá bom venha, tá bom vá”, como costuma dizer. Mas parece que agora ele acertou, já tem dois filhos. Está morando no Rio. Tenho o telefone dele. Se quiser ligar...

Liguei. Além de não ver Gerôncio há muito tempo, estava curioso para saber se ele ainda estava no sétimo.

– Como é que vai, Gerôncio?! Faz tempo que a gente não se fala! Encontrei Jocácio, foi ele quem me deu teu telefone.

– Rapaz, estou com saudade de Fortaleza! O Jocácio está casado com a mesma mulher há quase 30 anos e eu já estou no oitavo “tá bom venha, tá bom vá”.

– Não é o sétimo, Gerôncio?

– Era até a semana passada. Quer dizer, ainda são sete. A do terceiro “tá bom venha, tá bom vá” está morando também aqui no Rio. Por acaso, me encontrei com ela à noite no Leblon. Fiquei pensando nos bons tempos... Perguntei se ela queria recomeçar. Ela respondeu: “Tá bom venha.”

– Gerôncio, para com isso! Jocácio me disse que você até filhos já tem.

– Pois é, depois que os meninos nasceram a coisa melhorou por um lado, mas piorou por outro.

A maionese desandou, a tampa da panela saltou e a chama se apagou. Por causa dos meninos, ela não iria sair de casa...

– Gerôncio, pensa nos meninos!

– Peguei a escova de dente, algumas roupas, arrumei a mala. Mas pensei nos meninos. Dei meia-volta, larguei a mala num canto e quis ficar.

Ela apenas disse: “Não, tá bom, vá!”

acoelhof – Fortaleza (acoelhof@gmail.com)