sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O tamanho das coisas



Bem interessante para percebermos nossa dimensão no universo.
Paulo Andre

http://htwins.net/scale2/lang.html

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Educação estagnada



Por Naercio Menezes Filho - Valor 28/09

O IBGE acaba de divulgar os resultados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), referente ao ano de 2011. Essa pesquisa dá um panorama da situação econômica e social do Brasil atual e permite uma comparação interessante ao longo do tempo. Os números nas áreas de educação e trabalho despertam muito interesse. Como se sabe, para acabar com a pobreza e desigualdade no longo prazo e para competir com os trabalhadores coreanos e chineses, é necessário qualificar os nossos futuros trabalhadores. O que mostram os números?

Na realidade, os números na educação foram decepcionantes. Apesar de continuarmos com avanços importantes nas áreas de pobreza e desigualdade, houve nítida desaceleração no acesso à escola por parte da população jovem nos anos recentes. A figura abaixo mostra as variações nas taxas de frequência à escola e de trabalho entre os jovens de 15 a 17 e de 18 a 22 anos de idade em dois períodos: 1995-2003 e 2003-2011.

No primeiro período, houve um grande aumento na frequência escolar entre os mais jovens, de 15 pontos percentuais. Porém, entre 2003 e 2011 o aumento foi de apenas 2 pontos. Com relação ao trabalho, se entre 1995 e 2003 a redução da porcentagem de jovens trabalhadores foi de 14 pontos, no período recente foi de apenas 6 pontos. Vale notar que, se no período anterior o aumento no estudo foi superior à redução do trabalho, no período recente aconteceu o inverso, ou seja, a redução no trabalho foi maior do que o aumento na frequência escolar.

No grupo de 18 a 22 anos de idade, que deveria estar frequentando a faculdade, a situação é ainda mais grave. Se a taxa de frequência escolar (primordialmente ensino superior) aumentou 7 pontos percentuais entre 1995 e 2003, ela diminuiu 5 pontos entre 2003 e 2011! Além disso, no período inicial a porcentagem de jovens trabalhadores diminuiu 6 pontos, mas no período recente aumentou 3 pontos. Também nesse caso, enquanto no período anterior o aumento da escolaridade foi maior que a redução do trabalho, no período recente ocorreu o contrário, ou seja, a redução no acesso à escola foi maior que o aumento do trabalho.

Assim, os dados mostram claramente que o grande crescimento no acesso à escola ocorrido entre meados de década de 90 e dos anos 2000, chegou ao fim. Isso é muito preocupante, pois ainda estamos longe de termos uma situação satisfatória em termos educacionais. A porcentagem de pessoas adultas com ensino médio concluído no Brasil é de apenas 25% e com ensino superior completo é 10%. Nos EUA, já em 1960 mais de 60% dos trabalhadores tinham pelo menos ensino médio completo e hoje em dia, quase 90% da população está nessa situação.

Quais as razões para essa estagnação educacional? Os dois principais fatores são a baixa qualidade do ensino e a redução dos diferenciais de salário associados à educação no Brasil. Começando pelo último fator, um trabalhador que concluísse o ensino médio em 1995 ganhava, no começo de sua carreira, 44% mais do que aquele que só havia concluído o ensino fundamental. Hoje em dia, ganha apenas 13% mais. O grande aumento no número de concluintes no ensino médio ao longo da década passada diminuiu o salário relativo dos concluintes. Lei da oferta e da procura. Além disso, com o aumento do salário dos trabalhadores menos qualificados, fruto de aumentos no salário mínimo e da demanda por setores que empregam intensivamente esses trabalhadores, o custo de oportunidade de cursar tanto o ensino médio como o ensino superior aumentou.

Além disso, todos sabem que a qualidade do ensino médio público é muito baixa e sua estrutura desestimulante. O jovem que frequenta esse nível tem muitas dificuldades para aprender algo que seja útil para o mercado de trabalho. Isso ocorre não só pelas deficiências de aprendizado do próprio jovem, que foram se acumulando ao longo do tempo, mas também porque o ensino médio tradicional tem disciplinas demais e muito abstratas. No caso do ensino superior, a grande maioria das vagas disponíveis está em áreas que já estão com o mercado de trabalho saturado. Assim, aqueles que podem adiar a opção de estudar, frente a um mercado de trabalho aquecido, o fazem imediatamente.

Quais as soluções para trazer o jovem de volta para a escola? Reestruturar parte do ensino médio numa direção mais profissionalizante, melhorar a qualidade do ensino fundamental, começando pela creche e pré-escola e aumentar a oferta de vagas em carreiras que o mercado realmente precisa, nas áreas de ciências exatas e tecnológicas.



Naercio Menezes Filho, professor titular - Cátedra IFB e coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper, é professor associado da FEA-USP

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Ferreira Gullar - Uma visão crítica das coisas



Veja - 24/09/2012



"O poeta diz que o socialismo não faz mais sentido, recusa o rótulo de direitista e ataca: Quando ser de esquerda dava cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é"

Um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos, Ferreira Gullar, 82 anos, foi militante do Partido Comunista Brasileiro e, exilado pela ditadura militar, viveu na União Soviética, no Chile e na Argentina. Desiludiu-se do socialismo em todas as suas formas e hoje acha o capitalismo "invencível". E autor de versos clássicos — "À vida falta uma parte / — seria o lado de fora — / para que se visse passar / ao mesmo tempo que passa /. e no final fosse apenas / um tempo de que se acorda / não um sono sem resposta. / À vida falta uma porta". Gullar teve dois filhos afligidos pela esquizofrenia. Um deles morreu. O poeta narra o drama familiar e faz a defesa da internação em hospitais psiquiátricos dos doentes em fase aguda. Sobre seu ofício, diz: "Tem de haver espanto, não se faz poesia a frio".

O senhor já disse que "se bacharelou em subversão" em Moscou e escreveu um poema em que a moça era "quase tão bonita quanto a revolução cubana". Como se deu sua desilusão com a utopia comunista?

Não houve nenhum fato determinado. Nenhuma decepção específica. Foi uma questão de reflexão, de experiência de vida, de as coisas irem acontecendo, não só comigo, mas no contexto internacional. É fato que as coisas mudaram. O socialismo fracassou. Quando o Muro de Berlim caiu, minha visão já era bastante crítica. A derrocada do socialismo não se deu ao cabo de alguma grande guerra. O fracasso do sistema foi interno. Voltei a Moscou há alguns anos. O túmulo do Lenin está ali na Praça Vermelha, mas pelo resto da cidade só se veem anúncios da Coca-Cola. Não tenho dúvida nenhuma de que o socialismo acabou, só alguns malucos insistem no contrário. Se o socialismo entrou em colapso quando ainda tinha a União Soviética como segunda força econômica e militar do mundo, não vai ser agora que esse sistema vai vencer.

Por que o capitalismo venceu?

O capitalismo do século XIX era realmente uma coisa abominável, com um nível de exploração inaceitável. As pessoas com espírito de solidariedade e com sentimento de justiça se revoltaram contra aquilo. O Manifesto Comunista, de Marx, em 1848, e o movimento que se seguiu tiveram um papel importante para mudar a sociedade. A luta dos trabalhadores, o movimento sindical, a tomada de consciência dos direitos, tudo isso fez melhorar a relação capital-trabalho. O que está errado é achar, como Marx diz, que quem produza riqueza é o trabalhador e o capitalista só o explora. É bobagem. Sem a empresa, não existe riqueza. Um depende do outro. O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas. É um criador, um indivíduo que faz coisas novas. A visão de que só um lado produz riqueza e o outro só explora é radical, sectária, primária. A partir dessa miopia, tudo o mais deu errado para o campo socialista. Mas é um equívoco concluir que a derrocada do socialismo seja a prova de que o capitalismo é inteiramente bom. O capitalismo é a expressão do egoísmo, da voracidade humana, da ganância. O ser humano é isso, com raras exceções.

O capitalismo é forte porque é instintivo. O socialismo foi um sonho maravilhoso, uma realidade inventada que tinha como objetivo criar uma sociedade melhor. O capitalismo não é uma teoria. Ele nasceu da necessidade real da sociedade e dos instintos do ser humano. Por isso ele é invencível. A força que toma o capitalismo invencível vem dessa origem natural indiscutível. Agora mesmo, enquanto falamos, há milhões de pessoas inventando maneiras novas de ganhar dinheiro. É óbvio que um governo central com seis burocratas dirigindo um país não vai ter a capacidade de ditar rumos a esses milhões de pessoas. Não tem cabimento.

0 senhor se considera um direitista?

Eu, de direita? Era só o que faltava.A questão é muito clara. Quando ser de esquerda dava cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é. Pensar isso a meu respeito não é honesto. Porque o que estou dizendo é que o socialismo acabou, estabeleceu ditaduras, não criou democracia em lugar algum e matou gente em quantidade. Isso tudo é verdade. Não estou inventando.

E Cuba?

Não posso defender um regime sob o qual eu não gostaria de viver. Não posso admirar um país do qual eu não possa sair na hora que quiser. Não dá para defender um regime em que não se possa publicar um livro sem pedir permissão ao governo. Apesar disso, há uma porção de intelectuais brasileiros que defendem Cuba, mas, obviamente, não querem viver lá de jeito nenhum. É difícil para as pessoas reconhecer que estavam erradas, que passaram a vida toda pregando uma coisa que nunca deu certo.

Como o senhor define sua visão política?

Não acho que o capitalismo seja justo.

O capitalismo é uma fatalidade, não tem saída. Ele produz desigualdade e exploração. A natureza é injusta. A justiça é uma invenção humana. Um nasce inteligente e o outro burro. Um nasce inteligente, o outro aleijado. Quem quer corrigir essa injustiça somos nós. A capacidade criativa do capitalismo é fundamental para a sociedade se desenvolver, para a solução da desigualdade, porque é só a produção da riqueza que resolve isso. A função do estado é impedir que o capitalismo leve a exploração ao nível que ele quer levar.

Qual a sua visão do governo Dilma Roussef?

Dilma é uma mulher honesta, não rouba, não tem a característica da demagogia. Mas ela foi posta no poder pelo Lula. Assim, não tem autoridade moral para dizer não a ele. Nesse aspecto, é prisioneira dele.

Como o senhor avalia a perspectiva de condenação dos réus do mensalão?

O julgamento não vai alterar o curso da história brasileira de uma hora para a outra. Mas o que o Supremo está fazendo é muito importante. É uma coisa altamente positiva para a sociedade. Punir corruptos, pessoas que se aproveitaram de posições dentro do governo, é uma chama de esperança.

O senhor se identifica com algum partido político atual?

Eu fui do Partido Comunista, mas era moderado. Nunca defendi a luta armada. A luta armada só ajudou mesmo a justificar a ação da linha dura militar, que queria aniquilar seus oponentes. Quando fui preso, em 1968, fui classificado como prisioneiro de guerra. O argumento dos militares era, e é, irrespondível: quem pega em armas quer matar, então deve estar preparado para morrer.

O senhor condena quem pegou em armas para lutar contra o regime militar?

Quem aderiu à luta armada foram pessoas generosas, íntegras, tanto que algumas sacrificaram sua vida. Mas por um equívoco. Você tem de ter uma visão critica das coisas, não pode ficar eternamente se deixando levar por revolta, por ressentimentos. A melhor coisa para o inimigo é o outro perder a cabeça. Lutar contra quem está lúcido é mais difícil do que lutar contra um desvairado.

Como se justifica sua defesa da internação o tratamento da esquizofrenia?

As pessoas usam a palavra manicômio para desmoralizar os hospitais psiquiátricos. Internei meu filho em hospitais que têm piscina, salão de jogos, biblioteca. Mesmo os públicos não têm mais a camisa de força ou sala com grades. Tive dois filhos esquizofrênicos. Um morreu, o outro está vivo, mas não tem mais o problema no mesmo grau. Controlou com remédio, e a idade também ajuda. A esquizofrenia surge na adolescência e se junta à impetuosidade. Com o tempo, a pessoa vai amadurecendo. Doença é doença, não é a gente. Se estou gripado, a gripe não sou eu. A esquizofrenia é uma doença, mas eu não sou a esquizofrenia. Posso evoluir, me tornar uma pessoa mais madura, debaixo de toda aquela confusão. O esquizofrênico com 50 anos não é o mesmo de quando tinha 17.

Qual o pior momento na sua convivência com filhos esquizofrênicos?

Quando a pessoa entra em surto, ela pode se jogar pela janela. Meu filho, o Paulo, se jogou. Hoje ele anda mancando porque sofreu uma lesão na coluna. Ele conversava comigo, via televisão, brincava, lia meus poemas. Em surto, não tinha controle. Queria estrangular a empregada. Nessas horas, a única maneira é internar e medicar. Nesse estado, sem nenhum socorro, o esquizofrênico pode fazer qualquer coisa.

A família pobre faz o quê, se não tem mais onde internar?

Se mantiver a pessoa em casa, ela poderá tocar fogo em tudo, pegar uma faca e tentar assassinar o pai. Poderá fugir para a rua, desvairada. Essa política contra os hospitais psiquiátricos tem como resultado prático uma tragédia em que os ricos internam seus filhos em clínicas particulares e os pobres morrem na rua. Quando ouço alguém dizer que as famílias internam os filhos porque querem se ver livres deles, só posso pensar que essa pessoa gosta dos meus filhos mais do que eu. Nunca viu meu filho, mas ama meu filho mais do que eu. Absurdo. Você não sabe o que é uma família ter um filho esquizofrênico. Além do problema do tratamento, existe o desespero de não saber o que fazer. Os hospitais psiquiátricos continuam a existir porque os médicos sabem que não há outra saída. Não se interna um doente para que ele fique vinte anos lá dentro, mas sim três dias, três meses. Meus filhos nunca ficaram internados além do tempo necessário. Eles voltavam para casa normais. Era uma alegria. Nenhuma família quer ter seu filho preso.

Como foi a primeira vez que se defrontou com a doença?

O primeiro surto do Paulo foi no exílio, em Buenos Aires. Um dia, no apartamento, a gente estava brincando, a bola desceu pela escada, ele saiu para pegá-la e não voltou. Desci, ele tinha sumido. Em que direção eu ando? Voltei para casa e fiquei chorando, não sabia o que fazer. Paulo ficou meses sumido. Isso foi em 1974, logo que cheguei a Buenos Aires. Terminei encontrando-o preso. No desvario, ele tentou roubar um carro — não sabia nem dirigir — e foi preso. Fez greve de fome. Estava esquelético.

O policial disse que era preciso uma ordem para soltá-lo, porque era menor. Mas deixou que eu levasse meu filho, porque sabia que ele estava doente. Levei o Paulo para casa. Ele entrou e começou a arrebentar a janela. Morávamos no 5o andar. Ele foi internado. Até o dia em que, esperto como é, sumiu do hospital, para sempre. Foi encontrado em São Paulo. Saiu de Buenos Aires sem um tostão, com a roupa do corpo. Esses episódios não têm fim.

Como é seu método para fazer poesia?

Já fiquei doze anos sem publicar um livro. Meu último saiu há onze anos. Poesia não nasce pela vontade da gente, ela nasce do espanto, alguma coisa da vida que eu vejo e que não sabia. Só escrevo assim. Estou na praia, lembro do meu filho que morreu. Ele via aquele mar, aquela paisagem. Hoje estou vendo por ele. Aí começo um poema... Os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos. Não dá para escrever um poema sobre qualquer coisa.

O mundo aparentemente está explicado, mas não está. Viver em um mundo sem explicação alguma ia deixar todo mundo louco. Mas nenhuma explicação explica tudo, nem poderia. Então de vez em quando o não explicado se revela, e é isso que faz nascer a poesia. Só aquilo que não se sabe pode ser poesia.

A idade é uma aliada ou uma inimiga do poeta?

Com o avanço da idade, diminuem a vontade e a inspiração. A gente passa a se espantar menos. Tem poeta que não se espanta mais, mas insiste em continuar escrevendo, não quer se dar por vencido. Então ele começa a escrever bobagens ou coisas sem a mesma qualidade das que produzia antes. Saber fazer ele sabe, mas é só técnica, falta alguma coisa. Não se faz poesia a frio. Isso não vai acontecer comigo. Sem o espanto, eu não faço. Escrever só para fazer de conta, não faço. Eu vou morrer. O poeta que tem dentro de mim também. Tudo acaba um dia. Quando o poeta dentro de mim morrer, não escrevo mais. Não vou forçar a barra. Isso não vai acontecer. Toda vez que publico um livro, a sensação que tenho é de que aquele é o definitivo. Escrever um poema para mim é uma grande felicidade. Se não acontecer, não aconteceu

terça-feira, 18 de setembro de 2012

POR QUE TENTAM FERIR LETALMENTE O PT ?



Manter viva a causa do PT: para além do “Mensalão”

Seg, 17 de Setembro de 2012 18:32

por Leonardo Boff

Há um provérbio popular alemão que reza: “você bate no saco mas pensa no animal que carrega o saco”.

Ele se aplica ao PT com referência ao processo do “Mensalão”. Você bate nos acusados mas tem a intenção de bater no PT. A relevância espalhafatosa que o grosso da mídia está dando à questão, mostra que o grande interesse não se concentra na condenação dos acusados, mas através de sua condenação, atingir de morte o PT.

De saída quero dizer que nunca fui filiado ao PT. Interesso-me pela causa que ele representa pois a Igreja da Libertação colaborou na sua formulação e na sua realização nos meios populares. Reconheço com dor que quadros importantes da direção do partido se deixaram morder pela mosca azul do poder e cometeram irregularidades inaceitáveis. Muitos sentimo-nos decepcionados, pois depositávamos neles a esperança de que seria possível resistir às seduções inerentes ao poder. Tinham a chance de mostrar um exercício ético do poder na medida em que este poder reforçaria o poder do povo que assim se faria participativo e democrático. Lamentavelmente houve a queda. Mas ela nunca é fatal. Quem cai, sempre pode se levantar. Com a queda não caiu a causa que o PT representa: daqueles que vem da grande tribulação histórica sempre mantidos no abandono e na marginalidade. Por políticas sociais consistentes, milhões foram integrados e se fizeram sujeitos ativos. Eles estão inaugurando um novo tempo que obrigará todas as forças sociais a se reformularem e também a mudarem seus hábitos políticos.

Por que muitos resistem e tentam ferir letalmente o PT? Há muitas razões. Ressalto apenas duas decisivas.

A primeira tem a ver com uma questão de classe social. Sabidamente temos elites econômicas e intelectuais das mais atrasadas do mundo, como soia repetir Darcy Ribeiro. Estão mais interessadas em defender privilégios do que garantir direitos para todos. Elas nunca se reconciliaram com o povo. Como escreveu o historiador José Honório Rodrigues (Conciliação e Reforma no Brasil 1965,14) elas “negaram seus direitos, arrasaram sua vida e logo que o viram crescer, lhe negaram, pouco a pouco, a sua aprovação, conspiraram para colocá-lo de novo na periferia, no lugar que continuam achando que lhepertence”. Ora, o PT e Lula vem desta periferia. Chegaram democraticamente ao centro do poder. Essas elites tolerariam Lula no Planalto, apenas como serviçal, mas jamais como Presidente. Não conseguem digerir este dado inapagável. Lula Presidente representa uma virada de magnitude histórica. Essas elites perderam. E nada aprenderam. Seu tempo passou. Continuam conspirando, especialmente, através de uma mídia e de seus analistas, amargurados por sucessivas derrotas como se nota nestes dias, a propósito de uma entrevista montada de Veja contra Lula. Estes grupos sepropõem apear o PT do poder e liquidar com seus líderes.

A segunda razão está em seu arraigado conservadorismo. Não quererem mudar, nem se ajustar ao novo tempo. Internalizaram a dialética do senhor e do servo. Saudosistas, preferem se alinhar de forma agregada e subalterna, como servos, ao senhor que hegemoniza a atual fase planetária: os USA e seus aliados, hoje todos em crise de degeneração. Difamaram a coragem de um Presidente que mostrou a autoestima e a autonomia do país, decisivo para o futuro ecológico e econômico do mundo, orgulhoso de seu ensaio civilizatório racialmente ecumênico e pacífico. Querem um Brasil menor do que eles para continuarem a ter vantagens.

Por fim, temos esperança. Segundo Ignace Sachs, o Brasil, na esteira das políticas republicanas inauguradas pelo do PT e que devem ser ainda aprofundadas, pode ser a Terra da Boa Esperança, quer dizer, uma pequena antecipação do que poderá ser a Terra revitalizada, baixada da cruz e ressuscitada. Muitos jovens empresários, com outra cabeça, não sedeixam mais iludir pela macroeconomia neoliberal globalizada.

Procuram seguir o novo caminho aberto pelo PT e pelos aliados de causa. Querem produzir autonomamente para o mercado interno, abastecendo os milhões de brasileiros que buscam um consumo necessário, suficiente e responsável e assim poderem viver um desafogo com dignidade e decência. Essa utopia mínima é factível. O PT se esforça por realizá-la. Essa causa não pode ser perdida em razão da férrea resistência de opositores superados porque é sagrada demais pelo tanto de suor e de sangue que custou.

Leonardo Boff é teólogo, filósofo, escritor e doutor honoris causa em política pela Universidade de Turim por solicitação de Norberto Bobbio

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Vaca amarela



Por Oscar Fortunato


"Quando os indios cansados dos banquetes de carnes de macacos, cobras, jacarés e portugueses avistaram aqueles "montes de carne", mal conseguiram dormir direito naquela noite. Chegavam de Cabo Verde os primeiros ruminantes que, em pouco tempo, tomariam conta da paisagem. Mas a fila dos fast-food anda, literalmente cronometrada e dependente das descendentes daquelas caboverdianas que fascinaram nossos silvícolas na aurora dessa tosca República.


E as vacas foram se multiplicando, obedecendo com rigor o preceito biblíco, a ponto de existirem mais delas do que nós, nessa terra varonil; embora a maioria delas terminará em uma mesa perto de você.

Caluniadas e difamadas, essas senhoras cornudas cansadas de seus trágicos finais invadiram nosso mundo lúdico com suas caras simpáticas e orelhas imensas. Existem ainda aqueles que se divertem com seus sofrimentos, mas como diria meu amigo maestro "você pode tirar o homem de Mozarlândia, mas não pode tirar Mozarlândia do homem".

Como vegetariano, tenho as vacas da mesma maneira que um elefante, pois não vejo neles o pão que sacia a minha fome. E sempre tive carinho com elas. Sempre as achei simpáticas, sejam pretas, brancas, azuis ou até mesmo a saltadora pasoliniana que dá nome a este festival.

Em todo o meu trabalho, tenho o dito do maestro como guia. Não quero fugir da minha Mozarlândia, pode ser que meus buritis tenham poucos sabiás e que as aves nem gorjeiem como as de lá, mas lhe entendo seus cantos e suas lamúrias e elas fazem sentido ao coração, pois o que vai pela cabeça nem o faz. Nessa lógica, me apropriei das máscaras de chifres ornados que colorem as Cavalhadas, evento de origem pagã que incrivelmente resistiu ao tempo nesse lugar em que as ruínas são mais velozes.

Juntei um pouco de rock e arte de rua para chegar na imagem que, na minha concepção iconográfica, somasse todo o meu discurso. E acredito ter alcançado o meu intento. Repetindo mais uma vez meu amigo regente: "Fugir de Mozarlândia é besteira..."

    Artista goiano, Oscar Fortunato [http://www.oscarfortunato.com/], autor de "campanhas" que colorem as ruas da capital de Goiás como o "Carnes Exóticas" e o "Pessoas Soltas".

sábado, 1 de setembro de 2012

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A cultura nas olimpíadas



Por Renato Janine Ribeiro - Valor 06/08

Eu, como milhões ou bilhões, gostei muito da abertura dos Jogos Olímpicos de Londres. Mas concordo com a ideia de que o Brasil pode - e deve - fazer melhor. Por duas razões. A primeira e mais difícil é um desafio a qualquer festa para multidões hoje em dia: é que no show, embora belíssimo, faltou cultura. Ele foi espetacular, em todos os sentidos da palavra; gerou prazer para o público; mostrou o melhor do esporte; apresentou uma Grã-Bretanha multiétnica e multicultural - e, ainda, apostou no que considera ser o foco da juventude atual, dos celulares às baladas de sábado à noite. Mas podia ter feito mais.
O espetáculo começou com Shakespeare, o maior autor da cultura inglesa. O ator Kenneth Branagh declamou uma passagem de "A tempestade", após quatro corais infantis representarem, cada um, uma das nações que formam o Reino Unido - Irlanda do Norte, Gales, Escócia e Inglaterra. Aliás, não só os corais mostravam a união do Reino, como todos contavam com negros e minorias étnicas, nem britânicas nem mesmo europeias. Mas, depois disso, a cultura sumiu. Ou melhor, a cultura que prevaleceu, de longe, foi a de massas. Não houve cultura genuinamente popular, erudita ou folclore. A Grã-Bretanha que nos foi mostrada foi, na hipótese mais generosa, a que começa com Mary Quant - para quem não sabe, a criadora da minissaia, a mulher que colocou Londres no centro do mundo jovem, na década de 1960 - e os Beatles.

Por que acho isso uma falha? Porque a abertura dos Jogos Olímpicos é uma enorme oportunidade para um país apresentar o melhor de sua cultura e mostrar que perspectivas ela abre para o mundo. Ele pode dizer como contribui para a paz e o enriquecimento da sociedade global. Sabendo disso, os britânicos apostaram em tudo o que aponta para uma humanidade solidária nas suas diferenças. Mas deixaram de lado um grande trunfo, que são vários séculos de excelente cultura. Na verdade, a falha que aponto é recorrente em nossos dias. O triunfo da indústria cultural é tão avassalador que até quem vive da palavra, como vários jornalistas e professores, sente vergonha dela, procurando substituí-la por cenas não-verbais da vida contemporânea. Daí que um dos episódios centrais do espetáculo tenha sido o dos jovens de hoje, que mostra todos os signos de consumo vinculados à Internet e à vida veloz.

Mas por que teríamos de escolher entre a cultura, digamos, "culta" e a cultura de massas? Não daria para ter ambas? Uma das grandes ênfases dos últimos anos esteve na comunicação multimídia. Mas multimídia inclui não só os novos meios de comunicação, como também os que têm milhares de anos, como o livro, as artes plásticas, a música. Todos eles se modificam ao longo dos tempos, e mudaram bastante graças à informática, porém permanecem ricos.

O Brasil poderá fazer melhor? Depende do empenho que coloque nisso. A lição de casa é, essencialmente: o que um país pode mostrar, de sua cultura, que seja uma contribuição importante para o mundo dos próximos anos? Um ponto é evidente, no caso de nosso País: a capacidade de integrar grupos distintos, sobretudo de nacionalidades, etnias e culturas diferentes. Não devemos vender a ninguém a duvidosa "democracia racial" e é preciso confessar nossas falhas neste campo. Mas lembremos que aqui os filhos de imigrantes, já na primeira geração, conversam entre si em português e não na língua dos pais. Isso é raro no mundo. Além disso, no Brasil é impossível distinguir pelo telefone a cor de uma pessoa, ao contrário do que sucede nos Estados Unidos. Não apenas somos um país de imigrantes, como temos uma identidade brasileira mais frágil (ou flexível) do que pretendem algumas outras - e hoje essa flexibilidade (ou fragilidade) é um trunfo para as relações humanas.

A segunda razão é o carnaval. Difícil, uma festa popular melhor que ele. Vi em 1989, na praça da Concorde, a celebração dos 200 anos da Revolução Francesa. Feia não foi. Mas a festa de Jean-Paul Goude foi um carnaval fracassado. Unir as melhores escolas de samba do país num megadesfile é algo que só o Brasil pode fazer. Mas o importante é que não seja apenas um pot-pourri. Será bom, caso se fale de Guimarães Rosa, João Cabral, Niemeyer e Glauber, que não tenhamos apenas bonecos deles em carros alegóricos e citações deles no samba-enredo. Será ótimo se a maior festa, que é uma imagem "for export" (mas também real) do país, permitir uma fecundação recíproca da cultura popular e erudita. Será fantástico se a criação da festa mobilizar nos próximos anos criadores e estudiosos da cultura, mas, sobretudo, as camadas populares. Não que vivamos em festa. Não que sejamos todos alegres. Mas, como ideal, a alegria é a prova dos nove, como dizia Oswald de Andrade. Quem sabe, para citá-lo de novo, fazer da festa a ocasião da massa comer o biscoito fino da cultura.

Temos as belezas naturais. Mas um dia Machado de Assis recebeu um visitante estrangeiro. Depois de lhe mostrar o Rio de Janeiro, ouviu-o dizer: o melhor mesmo é a beleza natural. Machado se entristeceu: o que nós fizemos não vale nada, se comparado com a natureza, que já recebemos pronta? Pois é aí que entra a cultura. Mostrar o que os brasileiros fizeram, e não apenas o que o Brasil é, pode ser bom. Discutir isso pode ser muito bom, nos anos que nos faltam. Devemos, também, ir além do país do carnaval. Por exemplo, Clarice Lispector é uma referência óbvia para a questão feminina. Os jogos podem ser a ocasião de nos perguntarmos o que temos para repassar ao mundo. Essa pergunta é uma das mais importantes que podemos nos colocar a respeito de nós mesmos.



Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Claro enigma



Valor 29/06


"Não serei o poeta de um mundo caduco/ Também não cantarei o mundo futuro", diz Carlos Drummond de Andrade nos versos que abrem o poema "Mãos Dadas". "O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente."

Foi fiel ao compromisso. Drummond sempre quis escrever na clave do que lhe era contemporâneo. A afirmação é do escritor Silviano Santiago, que, ao lado do poeta Antonio Cicero, realizará na próxima Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) a primeira de uma série de conferências em homenagem ao poeta que nasceu em Itabira (MG), foi "gauche" na vida e morreu em 1987, aos 84 anos.

Do "tempo presente" Drummond foi capaz de extrair uma obra atemporal e se tornou uma das principais referências da poesia no Brasil. Para seus herdeiros, fica a proposta: 29 de junho de 2012. Onde está a poesia brasileira hoje e de que é feita? Como e por quem? E com quem, afinal, ela fala?

A venda de livros de poesia no Brasil é absolutamente tímida: não chega a 2% da venda dos livros de ficção, segundo dados da GFK levantados a pedido do Valor. É um produto comercialmente difícil, dizem representantes do mercado editorial. Em compensação, a internet oferece um novo terreno para jovens poetas e, na periferia, versos se transformam em cápsulas para mensagens de protesto.

O cenário é complexo. Quase 90 anos atrás, quando um ainda inexperiente Drummond escreveu "Os 25 Poemas da Triste Alegria", seu segundo livro de poemas (o primeiro, "Teia de Aranha", sumiu), ele sabia para onde olhar: a Semana de Arte Moderna de 1922 concentrava as atenções da vida cultural no país. Drummond enviou o material para o modernista Mário de Andrade e recebeu respostas que o ajudariam a direcionar sua obra. Ao longo do século passado, a poesia nacional ainda veria o surgimento de outros grupos, como a geração de 45, os concretistas, os neoconcretistas e os poetas marginais, cada um com suas propostas e contrapropostas.

Já no tempo presente... "é cada um com seu projeto; o bloco do eu sozinho", descreve o poeta Paulo Henriques Britto, autor de livros como "Macau", que venceu os Prêmios Portugal Telecom e Alceu Amoroso Lima em 2004, e "Formas do Nada", publicado neste ano.

"Desde os anos 90, há uma pluralidade no repertório, uma diversidade dos parâmetros", afirma Italo Moriconi, organizador da antologia "Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século" e diretor da Editora Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), onde criou a revista "Ciranda da Poesia". "Cada um tem o próprio panteão de referências, que vai do rock aos quadrinhos ou à obra de Paul Valéry. Essa é a diferença fundamental para as décadas anteriores, quando havia grandes poetas referenciais."
Ainda assim, é possível buscar alguns pontos em comum na produção atual. "Acabamos nos acomodando a viajar a reboque do 'didatismo' da época das vanguardas", diz o poeta Marcos Siscar, professor da Unicamp e autor do livro "Poesia e Crise". "Se quisermos entender o que acontece à poesia, é importante problematizar o conceito de pluralidade."

Para ele, a poesia feita hoje revela "um impulso de negação do passado recente, no que ele tinha justamente de conflituoso, de comprometido, de propositivo ou, ainda, de 'autoritário'". Na prática, isso se traduz no resgate de opções literárias que antes eram evitadas e tachadas como anacrônicas. Por exemplo: escrever redondilhas e sonetos.

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo/ Perdeste o senso", declama Ferreira Gullar, de 82 anos, citando o famoso soneto de Olavo Bilac (1865-1918). "Quando comecei a escrever lá em São Luís [MA], fora dos centros de cultura mais atualizados, a visão de poesia que preponderava era essa, da versificação, do parnasianismo", conta Gullar, que venceu o Jabuti no ano passado com o livro de poemas "Em Alguma Parte Alguma".

Um dia, um amigo lhe emprestou um livro de Drummond, e foi aí que Gullar descobriu a poesia moderna. Ficou chocado, diz, ao ler versos como "Ponho-me a escrever teu nome/ com letras de macarrão". E mergulhou num processo que o levaria a questionar as formas fixas e buscar novas estruturas, o que o conduziria, anos depois, às experiências concretistas.

"Ao produzir textos que, violando as regras tradicionais, não só pretendiam ser poemas, mas, efetivamente, funcionavam como verdadeiros poemas, as vanguardas superaram o fetiche que existia pelas formas fixas. Essas são as maiores lições que elas nos legaram", avalia Antonio Cicero.

Hoje, observa, as formas fixas são retomadas sem a antiga noção de obrigatoriedade. "Os poetas contemporâneos as usam como autoimposições formais arbitrárias que se contrapõem à espontaneidade criativa e colocam tensões estimulantes para a produção do poema. Elas são meios e não fins."

Essa é uma das marcas, por exemplo, da poesia de Paulo Henriques Britto, que trabalha com métrica e rimas, mas interfere nas formas fixas e usa palavras e estruturas coloquiais. O curioso é que, assim como Gullar encontrou uma alternativa às formas fixas na obra de Drummond, Britto lista entre suas influências... Drummond. Principalmente "o" Drummond de "Claro Enigma" (1951), com seus versos decassílabos: "E a máquina do mundo, repelida/ se foi miudamente recompondo,/ enquanto eu, avaliando o que perdera,/ seguia vagaroso, de mãos pensas".

Contraditório? Sim. "Para se adequar à mobilidade do indivíduo e da história no século XX, Drummond adotou linguagens poéticas descontínuas e variadas que, vistas no seu conjunto, se contradizem", diz Santiago.

Mudavam as formas e também os conteúdos. Drummond passou por uma fase "anárquico-sentimental" nos anos 30, outra cosmopolita e engajada contra a ditadura Vargas (1937-1945), dedicou-se às lembranças da infância nos volumes de "Boitempo", relaciona Santiago. Multiplicidade que se apresenta ao folhear uma antologia poética de Drummond: "José", "Nosso Tempo", "Morte do Leiteiro", "Intimação", "Lira Romantiquinha", "Nudez", "Nova Canção do Exílio"... "Um sabiá/ Na palmeira, longe./ Estas aves cantam/ Um outro canto", diz a versão de Drummond para o poema de Gonçalves Dias, que também foi atualizada, entre outros, por Murilo Mendes ("Minha terra tem macieiras da Califórnia/ Onde cantam gaturamos de Veneza"), José Paulo Paes ("… sabiá… papá… maná… sofá… sinhá… cá? bah!") e Oswald de Andrade ("Não permita Deus que eu morra / Sem que volte pra São Paulo").

O passarinho, parece, não tem inspirado muito a poesia nacional. "Há hoje uma crise do próprio sentimento de pertença", afirma Italo Moriconi. "Até os anos 90, a produção poética era marcadamente sobre o Brasil. Hoje, existe um horizonte cosmopolita."

Paulo Henriques Britto faz a mesma avaliação. "Desde o romantismo até a Tropicália, todos os movimentos brasileiros têm a necessidade de se posicionar em relação à questão nacional. É preciso mostrar que a gente assimilou a lição das vanguardas na França. No caso dos concretistas, é preciso mostrar que a gente faz um produto moderno que nem Brasília e a bossa nova. No caso da Tropicália, é preciso mostrar que a gente não tem medo da cultura pop americana. Essa necessidade, que, na minha geração, que está na faixa dos 50, já perde força, não tem sentido para a geração mais jovem, na faixa dos 30." Além disso, compara Britto, os novos poetas são poliglotas, adeptos do verso livre, misturam cultura pop com elevada e escrevem, com frequência, sobre viagens.

"Nada bate um rilke shake / no quesito anti-heartache", escreve a poeta Angélica Freitas em "Rilke Shake", poema que dá nome a seu livro de estreia, que integra a coleção "Ás de Colete", coordenada pelo poeta Carlito Azevedo e publicada pela Cosac Naify e pela 7Letras. A mistura de idiomas, diz Angélica, não vem de uma proposta planejada. "Saiu assim", diz ela.

Assim como Gullar se surpreendeu com Drummond na juventude, Angélica se lembra do impacto que sentiu quando, aos 15 anos, leu Ana Cristina Cesar (1952-1983). "A minha reação foi: dá para escrever desse jeito, então? 'As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios.' Você lê isso e gera estranhamento. É uma coisa que aparentemente não seria vista como poesia."

A preocupação com a "brasilidade" não está, de fato, entre suas preocupações, conta Angélica. "Mas isso não faz parte, de modo geral, da minha vida. Eu não acordo e penso 'sou brasileira' ou 'sou gaúcha'", diz. "A grande questão é: como se pode escrever poesia ainda, o que eu consigo fazer com o meu repertório de vivências, de leitura, que seja minimamente relevante, e não só um exercício de beletrismo, uma pirueta verbal."

Para Santiago, esse cenário está relacionado também ao processo de democratização do país. "Hoje, a geração dos mais velhos é a dos que tiveram o batismo poético na época das lutas contra a ditadura. Todos padeceram a intromissão da luta política na sua poesia. Começaram pela coleção 'Violão de Rua', da Civilização Brasileira, na qual a linguagem poética recebia a tintura populista e, nos piores casos, demagógica." Já a geração seguinte, diz, viu aflorar bons tradutores de poesia estrangeira. "A tradução foi o modo como Ana Cristina Cesar e Paulo Leminski, entre outros, se desviaram da tradição recente. Escrevem dentro de um repertório atual e cosmopolita, independentemente dos problemas políticos nacionais." Porém, brinca Santiago, quem achar que não tem nada a ver com a questão nacional é "ingênuo e fanfarrão". "Tanto melhor para ele, tanto pior para a obra que quer realizar."

Gullar identifica outro risco para a poesia atual: uma tendência ao hermetismo. "Isso é algo que não acho bom e não tem nada a ver com Drummond, com Manuel Bandeira... Sinceramente: se eu, que li e estudei poesia a vida inteira, não consigo entender, para quem eles estão escrevendo aquilo?", questiona. "Não vou dizer o que alguém pode ou não fazer. Mas pergunto: para quê? O sentido da vida é o outro, o da literatura também."

Com ou sem hermetismo, é disseminada a ideia de que a poesia é um gênero "difícil". E isso está presente até entre quem opta por trabalhar com literatura, conta Marcos Siscar, que tem percebido cada vez mais alunos de letras com uma atitude defensiva em relação a poemas. "Eu me pergunto que tipo de educação poética a escola lhes deu. Em poucos anos, serão eles os encarregados da formação de novos leitores."

Marcas do tal "tempo presente", como a busca por instantaneidade e eficiência, também entram em conflito com a poesia, afirma Antonio Cicero. Em uma sociedade multitarefas - e multiatarefada -, a poesia exige tempo e concentração. "No entanto, parece que, justamente por isso, é ela que pode nos livrar, ao menos temporariamente, dessa cadeia, proporcionando acesso a outra temporalidade. Ela representa uma alternativa à vida escravizada ao princípio do desempenho."

O fato é que a poesia não está no top 5 de gêneros favoritos do brasileiro ("Bíblia", livros didáticos, romances, livros religiosos e contos, nessa ordem, segundo a mais recente edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil). Ela aparece em sétimo lugar, logo atrás de literatura infantil. E, nas pesquisas de mercado feitas pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), a poesia nem aparece como categoria específica.

A pedido do Valor, a GFK, que acaba de divulgar dados preliminares do serviço Painel do Livro, sobre venda de livros no país, fez um recorte sobre poesia. Segundo a consultoria, as obras de ficção correspondem a 23% das vendas (a maioria, 61%, é de não ficção). Considere só o grupo dos livros de ficção: a venda de poesia corresponde a 1,8%.

É uma proporção parecida com a de títulos de poesia dentro da Livraria Cultura, por exemplo. Dos 25 mil títulos que há numa loja da rede, em média, cerca de 500 são de poesia. O que vende, diz o gerente de vendas da rede, Ricardo Schil, são autores consagrados, como Drummond, Bandeira e Fernando Pessoa. "Tirando os clássicos, o grande nome é Manoel de Barros, que tem um resultado comercial impressionantemente bom."

"Poesia Completa", de Manoel de Barros, já vendeu 25 mil exemplares desde que foi lançado, em 2010. "Escritos em Verbal de Ave" foi lançado em dezembro, com 10 mil exemplares, e uma reimpressão de mais 7 mil está sendo preparada. "Coisa raríssima [em poesia]", comenta Pascoal Soto, diretor no país da editora portuguesa LeYa. "Na ficção, você termina um livro e quer outro. O livro de poesia, você relê. A fidelidade do leitor para a obra de um poeta faz com que ele não experimente tanto."

"Poesia é difícil de vender", afirma Marta Garcia, editora da Companhia das Letras. E isso se reflete nas tiragens: enquanto um livro de prosa de um jovem escritor tem tiragem inicial de 3 mil a 5 mil exemplares na editora, a de um jovem poeta tem 2 mil. Mas, ainda que a poesia não seja carro-chefe em termos comerciais, ela confere "sucesso de estima", diz Marta.

Um exemplo disso foi a boa repercussão que a editora teve no ano passado com o lançamento do livro "Poemas" da polonesa Wislawa Szymborska, Prêmio Nobel de Literatura de 1996. A partir daí, conta Marta, a empresa decidiu reeditar sua coleção de poesia traduzida, lançada no início dos anos 90. Dessa coleção já foram relançados "Omeros", de Derek Walcott, e "Poemas", de Rainer Maria Rilke.

Em relação aos livros de poesia brasileira contemporânea, a editora adotou uma estratégia aparentemente simples: passou a dar às obras o mesmo tratamento visual, o que confere uma unidade, diz Marta, citando livros de jovens autores, como "Da Arte das Armadilhas", de Ana Martins Marques, e "Esquimó", de Fabrício Corsaletti.

A Companhia das Letras tem, ainda, os direitos sobre a obra de Vinicius de Moraes e, desde o ano passado, os da obra de Drummond. Dele a editora está lançando "José" (3 mil exemplares), "As Impurezas do Branco" (10 mil), "Antologia Poética" (10 mil) e "Sentimento do Mundo" (25 mil). "Vinicius e Drummond são outra história. Seus livros são muito lidos nas escolas", diz Marta. "Quando um livro entra nos programas de leitura do governo, há muita diferença na tiragem."

A poesia tem presença um pouco mais forte nas compras governamentais do que nas livrarias. No ano passado, o Programa Nacional Biblioteca da Escola adquiriu, para o ensino médio, 1.723.632 livros - dos 149 títulos selecionados, 12 eram de poesia, como "Navios Negreiros", de Castro Alves, uma antologia de João Cabral de Melo Neto e outra voltada para a poesia contemporânea. Para o ensino fundamental, foram 3.861.782 exemplares; dos 149 livros, 14 de poesia.

"Poesia para criança é um gênero muito comprado pelo governo", diz Soto, da LeYa, que, em 1992, quando era editor-assistente na Moderna, sugeriu a Manoel de Barros que escrevesse para o público infantojuvenil. O poeta, conta Soto, respondeu que nunca havia pensado no assunto e não escrevia por encomenda. Continuaram se correspondendo e, cerca de sete anos depois, o poeta enviou a Soto o poema "O Menino Que Carregava Água na Peneira". Soto, que havia acabado de ter uma filha, pediu um poema para a menina. "Ele ficou bravo. Disse: 'Lembre-se de que não escrevo por encomenda, mas lá vai'. E mandou o poema 'Menina Avoada'." Era a origem de "Exercícios de Ser Criança".

Ferreira Gullar também atendeu a esse apelo e, em 2000, lançou "Um Gato Chamado Gatinho". "Comecei a fazer para mim mesmo poemas sobre meu gato. Um dia, recebi um telefonema da editora pedindo um livro para crianças e ofereci esse", lembra. Depois, vieram um livro sobre lembranças da infância, outro de poesias e um de colagens. "Uma editora viu as colagens aqui em casa, disse que era interessante e sugeriu fazermos um livro", diz Gullar. "É algo que as editoras solicitam. Senão, eu não teria ido por aí."

De olho no mesmo público, a José Olympio planeja lançar um livro com poemas do modernista Raul Bopp (1898-1984). "Ele não escreveu para crianças, mas selecionamos poemas que podem ser lidos por elas", afirma sua gerente editorial, Maria Amélia Mello.

Para nosso hipotético poeta, porém, vale lembrar que, mesmo com o aquecimento do mercado editorial no Brasil, o acesso às grandes editoras ainda é difícil. "Elas estão muito mais pressionadas pelas vendas, mais restritas aos consagrados. As pequenas são o celeiro dos novos poetas", diz Soto.

A boa notícia é que, desde a década de 90, ter seu livro publicado se tornou um processo mais fácil no Brasil. O barateamento de ferramentas de edição e publicação levou ao surgimento de editoras que publicavam pequenas tiragens de obras pagas pelos próprios autores, com qualidade quase industrial.

A má é que os poetas logo entraram em contato com uma conhecida máxima econômica: quanto maior a oferta, menor a demanda. E o gargalo apareceu nas livrarias.

"É um movimento de mercado: há uma oferta muito grande que as livrarias não conseguem absorver", conta Jorge Viveiros de Castro, dono da editora 7Letras, uma das pioneiras nesse setor. "As editoras maiores têm um giro rápido, é um mercado muito alimentado pela novidade. Com tiragem menor, você nem consegue aparecer", diz Castro, que planeja, para agosto, a abertura de uma livraria própria da 7Letras em Ipanema, zona sul do Rio. Ao mesmo tempo, como o próprio Castro ressalta, as editoras menores podem se beneficiar muito do comércio eletrônico.

Mas é do outro lado do balcão, ou do poema, que estão as expectativas em relação à internet. "Nunca antes o poeta esteve tão alicerçado pelos meios. O Facebook e o Twitter facilitam a divulgação da poesia", afirma Fabrício Carpinejar, que dividirá a mesa Vidas em Verso, na Flip, com a poeta escocesa Jackie Kay. "A internet é mais propícia à leitura de poemas que de um romance, por exemplo. E o poema, assim como o texto digital, lida com a ideia da descontinuidade", observa o poeta, que lançou em 2009 o livro www.twit ter.com/carpinejar, com frases que havia divulgado por meio da rede social. "O poeta, hoje, precisa ter uma vida digital, além da impressa. A questão é o excesso de visibilidade. Será que Drummond hoje conseguiria sobreviver ao tópico no Twitter?"

Para Moriconi, a questão digital pode vir a ser o elemento que define uma preocupação comum na poesia contemporânea. "O suporte digital cria um espaço outro, que traz condições de existência para o poema para além do livro", diz, citando "Enter", antologia digital desenvolvida por Heloisa Buarque de Holanda, e o site "As Escolhas Afectivas", que se define como uma "curadoria autogestionada de poesia brasileira".

"A internet me parece um espaço de experimentação dos modos da interação autor/obra/leitor e afeta, sem dúvida, os três pontos da cadeia, sobretudo acelera-lhe o trânsito, desloca suas finalidades", diz Marcos Siscar. Mas, para ele, do ponto de vista da criação poética, as alterações ocorridas até agora ainda não são decisivas.

Paralelamente ao mundo digital, os bairros de periferia também têm sido palco de um burburinho poético, aponta Frederico Barbosa, diretor da Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em São Paulo. A instituição fez um levantamento de saraus de poesia na cidade e, após excluir aqueles em que a programação era basicamente de hip-hop, chegou a 80 eventos - dos quais mais da metade ocorre na periferia. Desses, um dos que têm maior visibilidade é o Cooperifa, criado em 2001 e realizado no Campo Limpo, na zona sul.

"A poesia está mudando de mãos. Não é nem a classe C que está chegando à poesia, são a D e a E", diz Barbosa, que associa o processo a mudanças socioeconômicas que vêm ocorrendo no Brasil nas últimas duas décadas, como o aumento da escolaridade e o maior acesso aos bens culturais. "Na década de 40, todo mundo que fazia poesia se conhecia. Nos anos 80, quando comecei, eu também sabia quem era quem. Hoje, não sei quem são os poetas deste país."

Com um discurso relacionado principalmente a denúncias sociais, esses poetas encontram nos versos um instrumento capaz de conferir impacto a suas mensagens. "Claro que tem a questão da qualidade. É uma poesia rudimentar, com aquelas rimas em 'ar', em 'ão'. Mas é uma produção que está cada vez melhor", constata Barbosa, que acaba de renovar o contrato com o governo do Estado para administrar a Casa das Rosas por mais quatro anos. De acordo com ele, a meta para esse período é transformar o espaço num centro de apoio a quem quer escrever, com cursos sobre literatura e informações sobre como publicar. "Acredito que poesia pode ser aprendida."



Drummond se dispõe a ensinar: "Penetra surdamente no reino das palavras / Lá estão os poemas que esperam ser escritos".

terça-feira, 29 de maio de 2012

Veja a Veja

Por Adriano Rubim

Uma parte do que a Veja publica é positiva, pois desmonta esquemas criminosos relevantes. Mas a equação não tem apenas esse lado. Cabe verificar os tratos que a revista faz para obter as denúncias que publica.


Quanto a isso, pode ser que ela tenha deixado de publicar coisas negativas que conhecia sobre suas fontes. Exemplo: é pouco provável que Veja não conhecesse a ilegalidade das operações de Cachoeira e as ligações dele com Demóstenes.Mas mesmo assim publicou matéria muito favorável a ele, chamando-o de mosqueteiro do combate a corrupção, nunca tendo dado a conhecimento de seus leitores as possíveis sombras que certamente sabia pairarem sobre Demóstenes.

Desse modo, Veja pode ter omitido informações relevantes de que tinha conhecimento, para preservar relacionamentos junto a fontes, ou por outras razões ainda menos transparentes.

Isso permitiu ou facilitou o avanço de Demóstenes na política e de Cachoeira na contravenção até níveis que não teriam se materializado se a revista tivesse divulgado problemas sabidos por ela sobre suas fontes.

A divulgação de um lado apenas de esquemas criminosos conhecidos pode, portanto, ter estimulado fortemente grupos de ação ilegal que se fizeram hegemônicos em Goiás e sabe-se lá onde mais no Brasil, com grandes prejuízos para a coletividade.

Assim, o problema não e o que Veja publica, mas o que deixa de publicar para obter o que publica. Importam também as razões e alianças que estão por traz disso. Esse fator e que precisa ser tornado transparente.

A hipótese de perseguição contra a Veja e a imprensa, para aliviar o mensalão, é algo que a revista levanta pra desviar o foco de suspeitas específicas que lhe atormentam. Isso pode ser mera manobra diversionista. Não se pode aceitar essa hilação como justificativa para deixar de investigar os fatos.

Da investigação das suspeitas específicas contra agentes graduados da revista pode se derivar a confirmação ou negação dos indícios de relacionamento indevido entre ela, Cachoeira e Demóstenes. Essa investigação deve ser de interesse inclusive da Veja, pois se ela for inocente ruirão as suspeitas levantadas.

Destaque-se: se ela for inocente!

Porque se não for, tentará de fato bloquear a investigação propriamente dita. Aliás, parece que tem tentado, o que tende a tornar ainda mais necessária a investigação.


Se por causa da manobra diversionista acima citada eu aceito a hipótese de não investigar a Veja, sobre cujas acões há indícios de irregularidade, inclusive gravações com autorização judicial, tenho que aceitar também a desculpa dada por Lula pro mensalão, pois ele diz que foi tentativa de golpe, arapuca da oposição, e por aí vai.

Nenhuma das duas manobras diversionistas acima deve ser aceita sem a necessária investigação. O mensalão está sendo investigado. O caso da Veja também precisa ser.

De mais a mais, quando Veja diz que as afirmações de conluio com Cachoeira e Demóstenes são cortina de fumaça pra aliviar o mensalão, um intérprete atento pode identificar que, na verdade, existe mais do que uma única cortina de fumaça nisso...

Com tanta fumaça, e vinda de tantos lados, só posso a desejar que os ventos de uma profunda investigação sejam lançados nessa história.

Ar puro ajuda a ver e entender melhor as coisas.

Penso que a imprensa faz e deve fazer, sim, investigação. Aliás, esse é um dos mais nobres papéis dela. Não raro a imprensa consegue ser até mais eficaz que a polícia na ação investigativa.

Se uma investigação é policialesca ou não, depende de qual sentido se atribui à palavra policialesca. Como não consigo delinear perfeitamente tal sentido, opto por examinar a questão sob um prisma mais objetivo.

Sob uma formulação mais objetiva, o que é errado é a imprensa conhecer, em sua investigação policialesca ou não, uma série de irregularidades, mas deliberadamente omitir parte delas, divulgando apenas (e convenientemente) o que se apura contra um lado.

Se fizer isso, a imprensa torna-se parte da engrenagem criminosa cujos malfeitos são acobertados e estimula a ação dessa engrenagem. E o faz deliberadamente, com vistas a atingir objetivos que podem ser os mais diversos, mas que certamente não se confundem com o interesse público, já que este não pode ser defendido mediante a proteção de facções criminosas.

Desse modo, em minha opinião, a imprensa está, sim, submetida a balizadores éticos em sua ação investigativa, não podendo defender ou proteger (via acobertamento) o lado de nenhum grupo criminoso, por exemplo, ao conhecer (e omitir do público) fatos que contra ele existam. Em poucas palavras: o acobertamento de crimes que tenham sido identificados não deve ser aceito na imprensa.

Exigir da imprensa esse norte ético não se confunde com cercear a liberdade de imprensa. É antes o contrário. É fortalecer a liberdade da imprensa em sua finalidade última, que é o oferecimento de informações fidedignas e tão imparciais quanto possível ao cidadão. Se admitimos que a imprensa selecione os bandidos que vai denunciar e acoberte os que não quer denunciar, aceitamos que a informação ao público seja parcial (nos dois sentidos), o que acaba por corroer um dos fundamentos da democracia; repita-se: o oferecimento de informações tão amplas, profundas e imparciais quanto possível ao cidadão.

Tampouco a exigência de balizadores éticos da imprensa a torna ligada a governos ou oposições. Pelo contrário, tais balizadores tendem a tornar a imprensa mais ligada apenas à materialidade dos fatos, e quem pauta a divulgação de notícias apenas pelos fatos conhecidos (todos eles e não parte deles) tem menos risco de ser amestrável pelo governo, pela oposição ou por quem quer que seja.

Portanto, a exigência de padrões éticos da imprensa é que gera sua real independência e torna possível alcançar um dos objetivos principais da democracia; a oferta de informações profundas, completas e imparciais ao cidadão, na máxima medida possível.

Quanto ao Collor, que foi identificado como um integrante do lado negro da força (eu mesmo fui um dos jovens cara-pintadas que fizeram pressão para derrubá-lo), o que se tem nele é uma expressão gritante das contradições que tornam surrealista a vida no País. Ele, que foi elevado à condição de campeão moral da direita contra Lula, primeiro deixou em vexame seus apoiadores com as irregularidades que depois surgiram, e agora se alia à esquerda para atacar um dos veículos mais identificados com a direita (a Veja).

Realmente, Collor está pra lá de uma "metamorfose ambulante" (Lula) e de um "esqueçam o que escrevi" (FHC).

O fato é que Collor foi apenas o primeiro de uma lista de anjos decaídos da direita. Depois dele vieram diversos, como o Arruda e agora o Demóstenes. Isso fragiliza a essência do discurso calcado em fatores morais que a oposição ao PT teima em utilizar. Assim como causa asco em alguns ver o Collor atuando como paladino da justiça, boa parte da população também não engole um discurso moralizante feito por pessoas como Arruda e Demóstenes.

É por isso que, em minha opinião, a oposição ao PT precisaria arrumar outro discurso para se construir como alternativa de poder. Ou arruma outro discurso ou arruma outros defensores desse discurso da moral. Defensores que de fato tenham a moral que falta a Collor em seu combate contra a Veja e em muitos da oposição, que se dizem grandes moralizadores, mas à vera têm é rabo de palha.

Aliás, bandidos não faltam também pras bandas do PT, só que ele, conhecendo bem suas (digamos) "limitações", adotou um discurso que não se liga a uma formulação facilmente atacável. Foi pelo lado da justiça social, da defesa do crescimento e do emprego, etc. Fazendo assim, escapou da armadilha de depender de um discurso que possa ser a toda hora facilmente desmontado.

Nessa linha, a oposição é hoje muito mais uma contradição à la Collor que o governo. Parece que o Aécio notou esse problema e está buscando um novo discurso, voltado para a eficiência administrativa e tal. Mas aí ele se complicou ao pedir (como de fato pediu e conseguiu) um emprego para uma prima do Cachoeira, a pedido de Demóstenes...

Tributo à Legião Urbana

Valor 29/05

As gravações do "MTV ao Vivo - Tributo à Legião Urbana", que acontecem hoje e amanhã no Espaço das Américas, em São Paulo, tendo à frente o guitarrista Dado Villa-Lobos, o baterista Marcelo Bonfá e o ator Wagner Moura, suscitam uma série de reflexões acerca de um dos maiores fenômenos da música jovem brasileira. Afinal, 16 anos após o término da banda de Brasília - anunciado semanas após a morte do cantor e compositor Renato Russo (1960-1996)-, o grupo continua a exercer um imenso fascínio.

Está em livros (por exemplo, "Renato Russo: o Filho da Revolução", de Carlos Marcelo, e "Como se Não Houvesse Amanhã - 20 Contos Inspirados em Músicas da Legião Urbana", vários autores), peças de teatro ("Renato Russo", musical estrelado por Bruce Gomlevsky e prêmio Shell carioca de melhor direção em 2006), produções cinematográficas ficcionais (os inéditos "Somos Tão Jovens", de Antonio Carlos Fontoura, e "Faroeste Caboclo", de René Sampaio) e documentários (caso de "Rock Brasília - A Era de Ouro", de Vladimir Carvalho).

Além de continuar em franca execução nas rádios e a gerar elevados dividendos em tempos de indústria fonográfica em frangalhos - os oito discos de estúdio foram remasterizados no estúdio Abbey Road, em Londres, em 2010, e lançados em três formatos distintos: digipack individual, caixa de edição limitada e vinil, todos acrescidos de encartes com textos e fotos inéditas. Recentemente, chegou às bancas de jornal e livrarias uma coleção com 15 títulos, entre discos ao vivo e o "Acústico MTV", gravado em 1992, e editado em 1999.

Segundo a EMI Music, gravadora do grupo, a Legião Urbana já vendeu 15 milhões de produtos relacionados. Só em 2011, o público levou três milhões de álbuns para casa. "Hoje tenho a clara noção de que entramos no imaginário das pessoas e temos enorme contribuição na cultura musical do Brasil, uma onda mítica interessante. Realizamos nosso sonho adolescente de banda de rock", diz Dado Villa-Lobos.

Todo esse poder de fogo legionário em plena década de 10 dos anos 2000 é sintoma de que a banda é a sobrevivente exclusiva - sobretudo, comercialmente falando - da geração dos anos 1980. Um tempo de redemocratização em que o rock era o som das massas - lembremos do álbum de figurinhas da banda RPM, que, por sua vez, teve a própria gravadora, a RPM Discos. Com dinheiro em caixa, a indústria musical brasileira finalmente tinha encontrado um formato. E a grande mídia, um manancial de personagens e assuntos. Um contexto sociopolítico riquíssimo, um "zeitgeist" tropical tão rijo que os mais desavisados têm a impressão de que o rock nacional só surgiu nos anos 1980.

Os protagonistas desse boom oitentista, no entanto, caíram num certo oblívio nos anos 1990 e 2000. Algo que não acometeu, por exemplo, os tropicalistas, que, no final dos anos 1960, retomaram os preceitos da antropofagia modernista de 1922. "A tropicália se articulou para ocupar seu espaço. A geração 80 não. O que houve, no segundo caso, foi uma oferta generosa de oportunidades. Revistas, jornais, rádios etc., todos mais ou menos irmanados na função de estabelecer uma mudança geracional que colocasse o Brasil em equivalência com o que acontecia no mundo", diz o jornalista e escritor Ricardo Alexandre, autor de "Dias de Luta: O Rock e o Brasil dos Anos 80". "A questão é que a mudança geracional também foi implacável com a turma dos anos 80. Mas, pensando bem, muita gente avançou até os anos 2000. A questão é saber se uma geração que aprendeu a conviver com respostas de um mercado tão aquecido tem interesse em continuar produzindo num mercado tão reduzido. Pelo visto, não, né?"

Jornalista, escritor, agitador cultural e apresentador do projeto PósTV, Alex Antunes, um dos primeiros amigos que Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá fizeram em São Paulo, sente-se aliviado com o obscurantismo reinante. "Eu confesso que respiro aliviado com esse ostracismo. A produção da geração 80 é muitíssimo inferior à dos anos 70, com a tropicália, Mutantes, Secos & Molhados, Novos Baianos e Raul Seixas", diz Antunes, testemunha do show de estreia dos legionários na capital paulistana, na extinta casa noturna Napalm, em 1983. "Mesmo a Legião estava empenhada em decalcar coisas gringas nos arranjos, como The Smiths e U2. Acho isso vergonhoso, uma limitação que a perspectiva histórica está se encarregando de corrigir. Sempre me dava desespero quando as votações de melhores do rock brasileiro colocavam os oitentistas coxinhas no mesmo patamar dos velhos malucos."

O tal ostracismo, detalhe, chegou a alguém que integrou a banda. Coincidentemente, as primeiras informações do tributo foram veiculadas em paralelo à exibição de duas reportagens do programa "Domingo Espetacular", da Rede Record, onde o ex-baixista Renato Rocha, o Negrete, que atuou na Legião Urbana entre 1984 e 1988, aparecia como morador de rua no Rio de Janeiro.

Tema de debates acalorados nas redes sociais, o tributo à Legião Urbana será, de acordo com o diretor de programação da MTV, Zico Góes, um marco. "Juntar Wagner com os integrantes da Legião, que sempre foi adorada pela MTV e pela nossa audiência, nos pareceu incrível. Roteiro e direção de arte estão nas mãos do Felipe Hirsch [premiado diretor de teatro]", diz.

"Os ensaios estão ótimos, a banda está segura do desafio de tocar nossas composições. Wagner está sensacional, conhecedor do repertório como poucos. Estamos nos divertindo de verdade", conta Villa-Lobos. "Além disso, temos outros novos músicos nos ajudando, como o Rodrigo Favaro, baixista da Orquestra Sinfônica Brasileira", diz Marcelo Bonfá. Um convidado internacional também fará parte da celebração: o guitarrista Andy Gill, da banda inglesa Gang of Four, uma das prediletas da turma.

"Aqueles barulhinhos harmônicos da guitarra de 'Ainda É Cedo' têm mais a ver com o Andy Gill do que o The Edge, do U2", conta Villa-Lobos. "Foi uma grande surpresa ele ter aceitado o convite, vir lá do outro lado do mundo para participar do show. É uma honra, porque ele é uma grande referência para mim desde sempre."

Já Wagner Moura, em vídeo promocional, afirma: "Harold Bloom [crítico literário] diz que o mundo não seria o que é sem William Shakespeare. A minha geração no Brasil não seria o que é sem as músicas da Legião. Me sinto como um fã escolhido para estar no palco com caras tão importantes." Enquanto isso, um satírico Renato Russo, no álbum duplo ao vivo "Como se Diz Eu Te Amo", de 2001 - póstumo, portanto -, afirma: "Eu adoro ser idolatrado. Me amem". Dito e feito.



"MTV ao Vivo - Tributo à Legião Urbana"

Onde: Espaço das Américas (rua Tagipurú, 795, SP); hoje e amanhã, às 21h; R$ 200.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Meio século em Paris

Valor 25/05


Maior bilheteria da carreira de Woody Allen no mercado americano, "Meia-Noite em Paris" parece ter mexido com a corda de nostalgia que habita parte da humanidade. Um desejo de frequentar outras épocas, ser contemporâneo de homens admirados e, para os que ainda têm uma relação visceral com as artes, a sorte de observar de perto o aparecimento de obras e artistas que ainda hoje reverberam.

O filme de Allen oferece porções generosas de cada uma dessas possibilidades, fazendo de seu charmoso Peugeot anos 1920 uma nova versão da máquina do tempo. Ao menos para seus personagens. Para nós, seres tridimensionais que habitam as ruas das cidades, o Metropolitan de Nova York oferece ótima opção até o próximo fim de semana: a mostra "The Steins Collect - Matisse, Picasso and the Parisian Avant-Garde", que conta o papel dos irmãos Stein na cena cultural parisiense das primeiras décadas do século passado.

Judeus de classe média alta, os Stein nasceram em Pittsburgh, filhos de um empresário do setor têxtil, e cresceram em Oakland, na Califórnia. Com a morte do pai, no começo da década de 1890, Michael, Leo e Gertrude seguiram por caminhos próprios até se reagruparem em Paris na década seguinte.

Michael, o irmão mais velho, assumiu os negócios da família e fez carreira na companhia de bondes de San Francisco. Leo largou Harvard, onde estudava direito, para realizar uma viagem pelo mundo, e na volta foi estudar na Johns Hopkins, em Baltimore, onde dividiu um apartamento com Gertrude.

Nenhum dos dois se formou, e em 1900 Leo seguiu para Fiesole, nos arredores de Florença, para estudar pintura. Pode-se localizar aí a gênese dos interesses que ganhariam corpo em Paris. Na Itália, Leo iria conviver com os pintores e herdeiros Egisto Fabbri e Charles Loeser, que iniciavam naquele momento sua famosa coleção de Paul Cézanne. Incentivado por um amigo, o historiador da arte Bernard Berenson, Leo adquiriu suas primeiras obras do autor de "Grandes Banhistas".

Em dezembro de 1902, numa parada em Paris, retornando de uma viagem a Londres, Leo saiu para jantar com um amigo, o violoncelista Pablo Casals. Tomado pela atmosfera artística parisiense, resolveu se mudar para a cidade. Com a ajuda de um primo, encontrou o apartamento-estúdio na rua de Fleurus, onde se instalou. Próxima ao Jardim de Luxemburgo, a rua de Fleurus se tornaria o epicentro da vida dos Stein na cidade. Leo passaria ali mais de uma década. Gertrude, que chegaria no outono de 1903, para viver com irmão, permaneceria no endereço na companhia de Alice B. Toklas até 1938.

Apesar de usufruir da renda de investimentos e aluguéis da família, os Stein viviam de retiradas modestas. É o apuro estético que lhes garantiria as aquisições. Leo, que iniciara seu acervo na Itália, havia adquirido, na sequência, obras de Degas, Van Gogh e Manet, mas logo percebeu que seus recursos seriam insuficientes para uma coleção de autores já consagrados. Foi quando passou a se interessar por jovens artistas relativamente desconhecidos.

Com essas ideias em mente, o segundo Salon d'Automne, em outubro de 1904, iria funcionar como um divisor de águas na trajetória de Leo e Gertrude. Após visitar a retrospectiva - dedicada a cinco dos mais relevantes artistas em atividade, entre eles Cézanne, Renoir e Toulouse-Lautrec - eles resolvem gastar todas as suas economias em arte moderna.

Michael havia chegado a Paris no começo daquele ano - muito por conta de Sarah, sua mulher, estudante de artes -, instalando-se num apartamento próximo ao de seus irmãos. A ideia do casal era passar um ano na cidade, mas acabaram ficando três décadas. Alguns meses depois, ele informou a Leo e Gertrude uma receita extra de US$ 1.600 proveniente de seus investimentos. Eles resolvem então agrupar seus recursos para comprar obras de arte em vez de títulos.

Além do apuro estético, uma rara capacidade agregadora também fazia parte dos talentos dos Stein. Foram eles, por exemplo, que apresentaram Matisse a Picasso, provavelmente no fim de 1905. E se ampliou nas noites de sábado, quando tanto a rua de Fleurus, quanto o apartamento de Sarah e Michael passaram a receber qualquer um com uma referência em mãos. Artistas, escritores, músicos e colecionadores prontos a discutir os últimos desenvolvimentos artísticos e contemplar um acervo magnífico num ambiente iluminado à base de fósforos.

Os Stein acabaram criando laços com os artistas cujos trabalhos possuíam. Nadavam com Matisse, de quem Michael e Sarah se tornaram íntimos; a namorada de Picasso ensinava francês a Alice Toklas, que chegou de San Francisco em 1910. Outra mudança notável foi o abandono de antigos padrões aristocráticos pela boemia local, tão bem retratado nas indefectíveis sandálias de Gertrude e no vegetarianismo de Leo, material farto para as fofocas dos amigos americanos que os visitavam.

A crescente surdez de Leo levava-o a se afastar dos encontros de sábado. E, em 1913, ele resolveu deixar a rua de Fleurus. Havia também um fastio, exposto em sua correspondência, na convivência com a irmã, que lhe parecia cada vez mais interessada em reconhecimento e glória, algo que não condizia com seu temperamento. Leo e Gertrude acabaram por dividir a coleção - entre outras obras, ela ficou com os quadros de Picasso e Leo, com 16 obras de Renoir.

Gertrude acentuou as impressões de seu irmão com a publicação de "A Autobiografia de Alice B. Toklas". Se, por um lado, ela ampliou o peso de sua influência sobre várias gerações de artistas - uma longa lista que vai de Hemingway a Cartier-Bresson, de Scott Fitzgerald a Picabia - por outro, passou a ser cercada por polêmicas e discórdias, como o manifesto "Testemunho contra Gertrude Stein", de 1935, assinado por Matisse, Braque, Tzara, entre outros, que questionava sua versão sobre a cena artística parisiense.

De todos os Stein, apenas Gertrude manteve sua coleção até o fim da vida, sobrevivendo inclusive à invasão nazista. Já o acervo de Michael e Sarah sofreu impacto devastador com a Primeira Guerra. Eles haviam cedido parte de suas obras de Matisse para uma exibição do pintor em Berlim, em julho de 1914. Com o início do conflito no mês seguinte, os quadros ficaram retidos na Alemanha. Após anos de negociações, o casal optou por vendê-los para dois colecionadores escandinavos.
O painel que abre a mostra oferece uma ideia visual dessas relações. Um amplo mapa de Paris, demarcando residências, ateliês e galerias espalhados pela cidade, nas primeiras décadas do século XX. A impressão, que resiste ao contemplá-lo, é de que a rede de influências daqueles três irmãos americanos se espalha, adensando-se como um metal de liga, unindo de modo imperceptível cada um daqueles pontos assinalados, que ainda hoje ocupam nosso imaginário com suas obras, história e enredos cinematográficos.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Espaço Aberto: Green

Espaço Aberto: Green

Seu nome é Green, ela está sozinha em um mundo que não mais lhe pertence. É uma fêmea de orangotango, vítima do desmatamento e da exploração de recursos naturais.

Este filme é uma emocionante viagem ao lado de Green, em seus últimos dias de vida. É um testemunho visual sobre os tesouros da biodiversidade da floresta tropical e o impacto devastador da exploração madeireira e do desmatamento causado para acomodar as plantações para extração de óleo de palma.
Produzido, dirigido, filmado e editado por Patrick Rouxel.
Duração: 48 min - Ano de produção: 2009
Para assistir, acesse http://migre.me/Ih44 ou

Espaço Aberto: Como ajudar ao próximo (Brasília-DF)

Espaço Aberto: Como ajudar ao próximo (Brasília-DF)

Muita gente quer ajudar, e não sabe como. Aqui vc encontra algumas dicas. O que vc não precisa, tem gente que precisa. E vai lhe agradecer.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

AS HIENAS E OS CORRUPTOS


Por Jacob Fortes via aparicio.secundus




Entre os animais irracionais existem os inofensivos, os peçonhentos, os transmissores de doenças, os asquerosos, e assim por diante. Dentre os últimos, chama atenção, em particular, a desaprumada hiena. Primeiro, pela tendência inata de alimentar-se de carcaças de animais que encontra ou rapina de outros carnívoros; segundo, pela fealdade, de causar repugnância aos olhos; e, terceiro, pela sua fetidez inigualável.

Diferentemente das hienas, há, entre os humanos, aqueles que, mesmo em aparições raras e fugidias, se fazem notar não apenas pelo perfume que agradavelmente vão recendendo, mas, sobretudo, pelo trajar distinto que os embelezam. Por onde passam lhes são prestados acatamentos e reverências já que suas figuras comedidas e afidalgadas faz parecer tratar-se de pessoas de indiscutível honorabilidade. A plácida postura de cordeiro, que simulam, lhes reforça a crença de serem pessoas de quem não se pode suspeitar. Aludo aos corruptos.

Enquanto as hienas, de hábitos noturnos, se comunicam naturalmente fazendo ressoar, na imensidão da noite, seus ganidos ásperos de efeito pavoroso, os corruptos, de hábitos diurnos, são silenciosamente discretos: não se deixam assobiar nem cantarolar, porém, à boca miúda, são excelentes comunicólogos; se fazem entender por mensagens codificadas. Quando não, optam por balbuciar locuções breves, por vezes monossilábicas, uma espécie de confusa linguagem de papagaio: ininteligível para muitos, mas facilmente entendida por seus acumpliciados. Ao serem flagrados em gravações telefônicas não mostram as suas caras, já que são invisíveis, mas por meio de notas injuriadas, vindas do além, denegam tudo e, principalmente, desqualificam quem as gravou. Por essas notas descobre-se que eles têm verdadeira predileção por certos advérbios, sobretudo o de negação: não conheço, nunca vi, jamais falei, tampouco ouvi.

As hienas, no papel de lixeiras, ao consumirem cadáveres, evitam a disseminação de doenças em favor do equilíbrio ecológico. Os corruptos, com sua insaciável gula de esponja, que ultrapassa o exclamar dos seus estômagos e suas ambições inescrupulosas, drenam os recursos públicos mediante o emprego de manobras fraudulentas. Nesse ofício de gatunagem causam o retesamento das rédeas da prosperidade nacional; alicerçam desabrigos; adoentam áreas consideradas vitais para as camadas mais necessitadas da população: hospitais, escolas, infância, velhice, segurança pública; alargam os caminhos dos presídios, defuntam feições; produzem carcaças fazendo crescer o corpo de voluntários, do submundo, que tem procuração para aplicar a pena máxima. No “solo gentil” não existem as poderosas hienas, das planícies africanas, devoradoras de carcaças, mas no “formoso céu”, de prontidão, os urubus monitoram os morrediços. Além de fazerem a recolha do lixo, de brinde, emprestam sua figura para que os rubro-negros a tornem a mascote flamenguista.

Tais quais os passarinhos, as hienas também são animais gregários. Os corruptos, no entanto, preferem viver solitariamente desacompanhados; despercebidos. Reforgem quando sob olhares fixos; repudiam interpelações. Caricaturados de Lombardi, esses escroques dos impostos do contribuinte, ainda que invisos aos olhos de todos, podem ser vistos, ocultamente, por alguns poucos aparceirados de gabinetes que, no silêncio das desoras, os ciceroneiam pelos caminhos atalhados e obscurecidos que levam aos recursos públicos; tao sedutores quanto evidentemente malcuidados. Recursos que exalam o suor dos trabalhadores brasileiros, e, também, o sangue tupiniquim que tanto atrai os vampiros dípodes, os quais, a exemplo dos morcegos, se esquivam da luz do sol. Com tamanha vocação corruptível, de duas uma, ou o país não é nosso, se fosse já teríamos extirpado essa chaga, ou nós não lhe pertencemos; vestimos o que nos dão.

Ao contrário da postura discretamente recatada que singulariza essa espécie de malfeitores, há uma variedade que prefere viver de de maneira ruidosa. São os caraduras, popularmente conhecidos por caras-de-pau, que recorrem ao populismo e outros expedientes sagazes para, à cretinice e falsa fé, insinuar que são legítimos emissários da honradez e da ética. Invariavelmente são encontrados no meio político, mormente no legislativo municipal, estadual e federal. Escudados pela legitimidade de mandato eletivo, e devidamente maquiados pelos efeitos acobertadores do óleo de peroba, se proclamam, em tom de austeridade, legítimos guardiões da retidão. Apesar dos seus discursos eloquentes, em favor da descência, alguns de causar arrebatamentos de fazer inveja às imponentes cachoeiras, proferidos do alto das tribunas, não passam, na substância, de embusteiros; desgraçadamente sufragados pelos eleitores. Para esses promesseiros fementidos, o provérbio secular adverte: “o gato rude que cuida, disto usa”

Contudo, esperançar é dávida natural da vida. Oxalá possa o astucioso progresso tecnológico, inventar máquinas capazes de identificar e caçar almas, visagens, sombras, fantasmas e silhuetas de contornos não identificado que, tencionando surripiar, vagueiam pela penumbra dos erários.

E enquanto as máquinas caçadoras não chegam, esses seres inabordáveis, agenciadores das desditas do povo, vão esvaziando os cofres públicos. Afeitos à desgraça produzida pela voluptuosiade do absurdo, os contribuintes, afrontados, exauridos e vergados por pesados fardos de impostos, se encarregarão — até que o jumento se torne profeta — de reabastecê-los, sob o amargo ressaibo de que os salteadores permanecerão impunes, inclusive porque a punibilidade não alcança seres espectrais. No entanto, já que o brasileiro tem forte apego a crendices, superstições, mandingarias e benzeduras, que tal o país, unido, valer-se desses expedientes para ver se afugenta esses fantasmas ratoneiros?


Jacob Fortes

Jacob Fortes de Carvalho Carvalho [mailto:jacobfortes@yahoo.com.br]

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Domingos Pellegrini - Histórias - Colunistas - Gazeta do Povo

O professor de História, no seu primeiro dia de aula, entra e os alunos nem percebem, conversando, falando ou jogando no celular. Ele escreve na velha lousa um imenso H, e depois vai desenhando cabeças com bigodes e barbas, enxada, foice. A turma foi prestando atenção, trocando risinhos, e agora espera curiosa. Finalmente ele fala:

– Não vamos estudar aquela História com H, só com heróis e grandes eventos! Vamos estudar a partir da nossa história, daonde e como viemos. Por exemplo, como é seu sobrenome?

– Oliveira.

– Pois é, muitos Oliveiras têm esse nome porque eram imigrantes europeus, fugidos de perseguições religiosas, então adotavam nomes de árvores ou plantas, Oliveira, Pereira, Trigueiro e tantos outros. E o seu sobrenome?

– Santos.

– Foi o nome adotado por muitos ex-escravos ou filhos mestiços de fazendeiros com escravas. Você é, como diz o IBGE, pardo, o que não é vergonha nem demérito algum, ao contrário, a maioria do povo brasileiro é pardo. E o seu sobrenome?

– Vicentini.

– Origem italiana. Os italianos, como os espanhóis, alemães, japoneses, vieram para cá para bater enxada, trabalhar nos cafezais quando os escravos foram libertados.

O engraçadinho da turma levanta o braço:

– Meu sobrenome é Silva, professor. Tem mais Silva na lista telefônica que formiga em formigueiro. Daonde eu vim?

– Da selva. Silva é selva, em latim. Foi o nome dado pelos romanos antigos aos que vinham das florestas para morar na cidade, eram os “da selva”. Se a gente pensar que a maioria das pessoas morava no campo há meio século, e depois se mudou em massa para as cidades, a origem do nome até se justifica.

A turma espera em silêncio: aonde ele quer chegar?

– Proponho o seguinte. Vocês conversem com seus pais, avós, tios, para saber dos antepassados. Daonde vieram, por que, trabalharam e viveram onde e como. Cada um contará então a história de sua família, e daí vamos situar essa história familiar na história social. Vamos falar da cafeicultura, por exemplo, depois que alguém falar que seu avô trabalhou com café.

Uma mocinha levanta a mão:

– Não só meu avô, professor, minha avó conta que também trabalhava. Levantava às cinco, fazia café, dava de mamar ao nenê, porque ela diz que sempre tinha um nenê no ombro, outro na barriga e uma criança na barra da saia. Depois de fazer o café e tratar das galinhas, recolher os ovos, tirar leite das vacas e cuidar da horta, ela ia levar marmita pro meu avô e os filhos maiores no cafezal, e ficava lá também batendo enxada até o meio da tarde, quando voltava pra preparar e janta e...

– Bem, só com isso que você contou podemos estudar a cafeicultura e o feminismo, comparando as famílias daquele tempo e de hoje, tantas mudanças. Cada um de vocês, com sua história, vai acender o fogo do conhecimento em cada aula. Eu só vou botar lenha, dar as informações, vocês vão dar vida à História, que aí, sim, vai merecer H maiúsculo! Combinado?

Os alunos aplaudem, entusiasmados, comentam: nossa, massa, uau, professor maneiro!... Saem, e depois ele, saindo, dá com o diretor nervoso:

– Eu ouvi sua aula, professor, aqui ao lado da porta, como faço com todo novato! O senhor tire essas ideias da cabeça, viu? Vai ensinar conforme o programa, começando pelo descobrimento, as três caravelas, a calmaria etc. Entendido? Ora, onde já se viu, História viva... Só por cima do meu cadáver!

O professor novato vai pelo corredor, sentindo-se morrer por dentro. Na sala dos professores, nas paredes estão Tiradentes e o crucifixo de Jesus, dois mártires. Ele chora, perguntam por que, apenas consegue dizer “não é nada, é uma longa História”.



terça-feira, 17 de abril de 2012

A crise global revigorou o marxismo, diz sociólogo

Valor 17/09

Desde que o prefixo "pós" se antepôs a todos as categorias do pensamento contemporâneo, ainda nos anos 1950, houve uma expansão intensa do seu uso. Do pós-moderno nas artes plásticas à pós-modernidade como generalização de todos os pensamentos que pretenderam, ao longo do século XX, superar os conceitos modernos, foi um salto de poucos anos e muitas denominações. Pós-estruturalista, pós-humano, pós-gênero, pós-feminista, pós-capitalista - era como se o "pós" pudesse revigorar de conteúdo conceitos que pareciam estar ultrapassados em suas principais características. Uma vez revistos e atualizados pela mágica do "pós", esses conceitos retomam seu lugar de valor para o pensamento.

Embora reconheça certa inflação no uso do "pós", o sueco Göran Therborn, 70 anos, professor emérito de sociologia da Universidade de Cambridge, quis se valer dele como estratégia para apontar o frescor do pensamento marxista, tão em voga no período pós-crise americana de 2008. Na semana passada, ele percorreu o Brasil, de Porto Alegre a Belém, passando por São Paulo, para lançar "Do Marxismo ao Pós-marxismo?" (Boitempo Editorial), seu segundo livro traduzido no país. Admirador das ciências sociais no Brasil, Therborn é um entusiasta dos movimentos sociais da América do Sul, que embalam seu ideal de que "outro mundo é possível". "Um cientista social progressista hoje tem poucas razões para chorar", diz ele na entrevista a seguir:



Valor: A globalização, o neoliberalismo e todas essas transformações que se generalizam no termo pós-modernidade podem ser pensados ainda a partir de Marx? O que há de atual nesse pensador alemão do século XIX que possa ser útil aos grandes dilemas do século XXI?

Göran Therborn: Primeiro, é preciso fazer algumas classificações. A globalização é o voo da modernidade, e o neoliberalismo é uma variante da modernidade de direita. Em outras palavras, temos aqui mutações do modernismo e da modernidade, e não a pós-modernidade. Sobre a globalização, estamos no mesmo terreno que Marx, o primeiro grande teórico social da modernidade contemporânea, como foi Baudelaire no que diz respeito à pintura e à poesia. O "Manifesto Comunista" foi a primeira inovação mais eloquente da globalização. Por isso, Marx foi recentemente ressuscitado, por exemplo, por Thomas Friedmann, do "New York Times". O economista Nouriel Roubini, que previu a crise de 2008, reconheceu a importância de Marx como o principal analista da dialética e das contradições do capitalismo. O capitalismo é autodestrutivo - e digo isso sem qualquer tom apocalíptico -, e a expansão dos baixos salários é insustentável, como Taiwan e Hong Kong estão aprendendo agora.

Valor: "Do Marxismo ao Pós-marxismo?" é um título estranho para um livro. Primeiro, porque faz uma interrogação que fica sem resposta. Depois, porque introduz no vocabulário da pós-modernidade o pós-marxismo como um conceito. Trata-se, afinal, de uma superação, de um avanço ou de um progresso do marxismo?

Therborn: O ponto de interrogação do título se refere a um futuro em aberto, ainda incerto. Comparado com Confúcio, Platão, Aristóteles, Maquiavel, John Locke, Adam Smith, ou com Dante, Cervantes e Shakespeare, Marx ainda é jovem. Ele será relido, reinterpretado e reinvocado ainda muitas vezes no futuro. O que é duvidoso é se haverá uma identidade coletiva para "os marxistas". Daí o ponto de interrogação. Para Marx, isso não significava muito. Como ele afirmou, numa provocação: "Eu não sou marxista".

Valor: Pós-marxismo, pós-capitalismo, pós-feminismo, pós-modernismo, pós-humanismo. O prefixo pós virou uma panaceia?

Therborn: Você está certa, houve uma inflação muito grande deste prefixo "pós". No entanto, o impulso intelectual pós-modernista era extremamente desafiador e importante, com suas investigações sobre as suposições mais básicas do nosso tempo - de "progresso", "desenvolvimento" etc. São questionamentos que têm sido muito frutíferos para fins políticos, bem como para um autoquestionamento intelectual.

Valor: O senhor cita a Universidade de São Paulo (USP) como referência para o não conformismo ao pensamento dominante e como suporte ao pensamento marxista de esquerda. O senhor está atualizado sobre a produção acadêmica brasileira neste sentido? Em que um país periférico como o Brasil pode contribuir para o desenvolvimento de teorias alternativas?

Therborn: Tenho um grande respeito pelas ciências sociais brasileiras, que conheço um pouco, não só da USP, mas também de outras universidades e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Eu acredito que a academia e a inteligência brasileiras certamente têm contribuições muito importantes intelectuais para o mundo.

Valor: "Sexo e Poder", seu primeiro livro traduzido no Brasil, discute as mudanças na instituição familiar em todo o mundo no século XX. Em que medida a mudança na família também alterou o modo de produção para o qual a crítica de Marx se dirigia?

Therborn: A família e os diferentes sistemas familiares no mundo inteiro continuam a ser importantes. Como mostrei em meu último livro, "The World" (Cambridge, 2011), menos da metade da força de trabalho mundial está empregada numa relação direta capital/trabalho. Um terço da mão de obra é formado por trabalhadores por conta própria, um sexto são membros da família patriarcal ajudando nas atividades econômicas, e de 5% a 10% estão em empregos públicos.

Valor: Ou seja, o fim do emprego industrial, que já não concentra mais a maioria da classe trabalhadora. É a isso que o senhor atribui o que chama de "fracassos e derrotas da esquerda"?

Therborn: Sim, a teoria de Marx se concentra nos circuitos do capital, inclusive nos mercados transnacionais. Mas é verdade, um desenvolvimento não ideológico das ideias de Marx tende a destacar que a virada do capitalismo avançado em direção à desindustrialização significou um enfraquecimento estrutural do trabalho e, consequentemente, da esquerda.

Valor: O senhor se refere ao "encontro malsucedido entre os manifestantes do mítico maio de 1968 e os movimentos trabalhistas". O que deu errado neste encontro?

Therborn: Basicamente, foi um não-encontro entre a utopia radical do movimento estudantil, do pragmatismo, por mais de esquerda que fosse, e do movimento sindical. Na melhor das circunstâncias, houve um longo período de contato entre o pragmatismo trabalhista de Lula, que se transformou, sem renegá-lo, no radicalismo de Dilma.

Valor: O senhor diz estar interessado nos "movimentos críticos ao modernismo que não são, contudo, defesas de direita do privilégio e do poder tradicionais". Que movimentos são estes? O tom geral do seu livro é de apelo a uma renovação no pensamento da esquerda. O senhor é um otimista?

Therborn: Os movimentos de direitos humanos, os movimentos feministas, movimentos das crianças, movimentos homossexuais, movimentos urbanos, movimentos de direitos de sustentabilidade. Há certamente sinais de despertar crítico. A tendência para a desigualdade intranacional e extrema polarização econômica levou a deslegitimação para uma dimensão impressionante, inclusive na última reunião de Davos. A "Primavera Árabe" colocou o capitalismo oligárquico em xeque, mesmo que se abram fluxos internacionais de comércio e capital. A América do Sul, exceto Chile e Colômbia, é um laboratório de transformação social. E a direita no Chile está sob forte pressão popular, dos movimentos estudantis e suas repercussões sociais. Um cientista social progressista hoje tem poucas razões para chorar, mesmo que o mundo permaneça sendo terrivelmente desigual. Outro mundo continua sendo possível.



"Do Marxismo ao Pós-marxismo?"

Göran Therborn. Boitempo Editorial 160 págs. R$ 39,00