quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Um controle psiquiátrico da dissidência?

Creio veementemente que o Levine tem razão.



Mais: eu tenho uma suspeita de que a maioria das doenças mentais diagnosticadas hoje em dia referem-se a pessoas sadias que não se enquadram, estatisticamente, nos padrões de comportamento desejados por autoridades ou psi(cologos quiatras) sem muito tempo para diagnosticar ou estudar cada caso.
E tome-se droga.

Quem não leu eu sugiro a ótima trilogia de Stieg Larsson Milenium, é ficção de ótima qualidade.

Reparem que a adorável Lisbeth Salander é apenas uma anti-autoritária brilhante.


Valeriano Lopes


Comportamento anti-autoritário, que recomenda avaliar poder antes de respeitá-lo, pode estar sendo reprimido desde a infância por diagnósticos e medicamentos questionáveis


Por Bruce E. Levine, em Alternet
Tradução: Antonio Martins
Imagem: Rico Gatson, O Grupo

Em minha carreira como psicólogo, falei com centenas de pessoas antes diagnosticadas por outros profissionais como portadoras de Transtorno Desafiador de Oposição (TDO), Transtorno do Déficit de Atenção / Hiperatividade (TDAH), Transtorno de Ansiedade e outras doenças psiquiátricas. Estou chocado por dois fatos: 1) quantos destes pacientes são, em essência, anti-autoritários; 2) como os profissionais que os diagnosticaram não o são.

Os anti-autoritários questionam se uma autoridade é legítima, antes de levá-la a sério. Sua avaliação de legitimidade inclui avaliar se as autoridades sabem de fato do que estão falando; se são honestas; e se se preocupam com aqueles que as respeitam. Quando anti-autoritários avaliam uma autoridade como ilegítima, eles desafiam e resistem a seu poder. Certas vezes, de forma agressiva; outras, de forma agressivo-passiva. Às vezes, com sabedoria; outras, não.

Alguns ativistas lamentam como parecem ser poucos os anti-autoritários nos Estados Unidos. Uma razão pode estar em que muitos anti-autoritários são psico-diagnosticados e medicados antes de formarem consciência política a respeito das autoridades sociais mais opressoras.

Por que profissionais de Saúde mental veem anti-autoritários como portadores de distúrbios mentais

Conquistar aceitação nas escolas superiores ou de especialização de medicina, e obter um doutoramento ou pós-doutoramento como psicólogo ou psiquiatra, significa superar muitos obstáculos. Requer adequar-se comportamentalmente a autoridades – inclusive aquelas pelas quais não se tem respeito. A seleção e socialização dos profissionais de saúde mental tende a excluir muitos anti-autoritários. Graus e credenciais são, antes de tudo, atestados de adequação. Quem estendeu seus estudos, viveu longos anos em um mundo onde é preciso conformar-se rotineiramente com as exigências de autoridades. Por isso, para muitos doutores e pós-doutores em saúde mental, pessoas diferentes, que rejeitam esta adequação comportamental, parecem ser de outro mundo – um mundo diagnosticável.

Descobri que a maior parte dos psicólogos, psiquiatras e outros profissionais de saúde mental não são apenas extraordinariamente adequados às autoridades – mas também inconscientes da magnitude de sua obediência. Também tornou-se claro para mim que o anti-autoritarismo de seus pacientes cria enorme ansiedade entre estes profissionais, o que impulsiona diagnósticos e tratamentos.

Na universidade, descobri que para ser rotulado como alguém com “problemas com autoridade”, bastava não bajular um diretor de treinamento clínico cuja personalidade era uma combinação de Donald Trump, Newt Gingrich e Howard Cosell. Quando alguns professores me disseram que eu tinha “problemas com autoridade”, reagi ao rótulo com sentimentos contraditórios. Por um lado, achei interessante, porque entre os filhos de trabalhadores, com quem havia crescido, eu era considerado de certa forma obediente à autoridade. Além disso, eu tinha feito minhas lições de casa, estudado e recebido boas notas. Entretanto, embora os meus novos “problemas com autoridade” deixassem-me alegre, por ser agora visto como um bad boy, também me preocupava com o tipo de profissão em que estava entrando. Mais especificamente, se alguém como eu era visto como tendo “problemas com autoridade”, como seriam chamados os garotos com quem cresci – atentos a tantas coisas que lhes interessavam, mas não suficientemente interessados com a escola para obedecê-la? Logo a resposta tornou-se clara.

Diagnósticos de doença mental para anti-autoritários

Um artigo de 2009 no Psychiatric Times, intitulado “TDO e TDAH: Enfrentando os Desafios do Comportamento Disruptivo”, relata que os “transtornos disruptivos”, uma categoria que inclui o Transtorno do Deficit de Atenção / Hiperatividade (TDAH) e o Transtorno Desafiador de Oposição (TDO), são os problemas de saúde mental mais comuns em crianças e adolescentes. O TDAH é definido por baixa atenção e tendência à distração; baixo auto-controle, impulsividade e hiperatividade. Já o TDO é definido como “um patrão de comportamento negativista, hostil e desafiante, sem as violações mais sérias dos direitos básicos de outros vistas no transtorno de conduta”. Os sintomas do TDO incluem “desafiar ativamente, ou recusar-se a obedecer com frequência as ordens e regras dos adultos” e “discutir frequentemente com adultos”.

O psicólogo Russel Barkley, uma das grandes autoridades da saúde mental mainstream em TDAH, diz que os que padecem deste mal têm déficits no que chama de “comportamento regrado”, já que são menos obedientes às regras das autoridades estabelecidas e menos sensíveis às consequências positivas ou negativas. Pessoas jovens com TDO também têm, segundo as autoridades do mainstream, os tão falados déficits em comportamento regrado. Por isso é tão comum, entre jovens, um “duplo diagnóstico” de TDAH mais TDO.

Realmente queremos diagnosticar e medicar todos os que têm “déficit em comportamento regrado”?

Albert Eisnten, quando jovem, teria provavelmente recebido um diagnóstico de TDAH, e talvez também de TDO. Ele não prestava atenção em seus professores, fracassou duas vezes nos exames de admissão à escola secundária e tinha dificuldades em conservar empregos. No entanto, Ronald Clark, um biógrafo de Einstein (Einstein: The Life and Times), sustenta que seus problemas não provinham de déficits de atenção, mas de seu ódio à disciplina autoritária, prussiana de suas escolas. Einstein dizia: “Os professores da escola primária pareciam-me sargentos e os do ginásio eram como tenentes”. Aos 13, ele leu o difícil Crítica da Razão Pura, de Kant – por estar interessado no livro. Clark também conta que Einstein recusava-se a se preparar para os exames de admissão ao ensino médio: era uma forma de rebelião contra o “intolerável” caminho exigido por seu pai, rumo a uma “profissão prática”. Depois que ele finalmente ingressou, um professor disse-lhe: “Você tem um defeito: ninguém pode te dizer nada”. As características particulares de Einstein, que tanto espantavam as autoridades, eram exatamente as que lhe permitiram destacar-se.

Para os padrões atuais, Saul Alinsky, o legendário organizador social autor de Regras para Radicais, teria sido certamente diagnosticado com um ou mais transtornos disruptivos. Rememorando sua infância, ele afirmou: “Eu nunca pensava em caminhar na grama até que via uma placa dizendo: ‘Não pise na grama’. Então, eu sapateava em cima dela”. Alinsky também recorda de uma ocasião, quando tinha 10 ou 11 anos, e seu rabino ensinava-lhe hebraico.

“Certo dia, li três páginas sem erros de pronúncia, e de repente uma moeda caiu sobre a Bíblia… No dia seguinte, o rabino voltou e me pediu para começar a ler. Simplesmente sentei em silêncio, recusando-me. Perguntou-me por que estava tão quieto e respondi: ‘Desta vez, é uma nota ou nada’. Ele começou a me bater”.

Muitas pessoas com ansiedade severa e ou depressão também são anti-autoritárias. Uma grande dor em suas vidas, que alimenta sua ansiedade e ou depressão, é o temor de que o desprezo a autoridades ilegítimas as torne social e financeiramente marginalizadas. Porém, também temem que a obediência a tais autoridades cause-lhes morte existencial.

Também empreguei muito tempo com pessoas que, numa época de sua vida, tiveram pensamentos e comportamentos bizarros a ponto de serem assustadores, para suas famílias e para si mesmas. Tinham diagnósticos de esquizofrenia e outras psicoses, mas se recuperaram e desfrutaram, por muitos anos, vidas produtivas. Neste grupo, nunca encontrei ninguém que não considerasse um grande anti-autoritário. Assim que se recuperaram, aprenderam a direcionar seu anti-autoritarismo para fins políticos mais construtivos – inclusive a reforma do sistema de saúde mental.

Muitos anti-autoritários que em fases anteriores de suas vidas tiveram diagnósticos de doenças mentais relatam que, ao serem rotulados como pacientes psiquiátricos, entraram num dilema. Autoritários exigem, por definição, obediência sem questionamentos. Por isso, qualquer resistência a seus diagnósticos e tratamentos causa enorme ansiedade em profissionais de saúde mental com este tipo de postura; e médicos que se sentiam descontrolados rotulavam estes pacientes como “refratários a tratamento”, expandindo a severidade do diagnóstico e entupindo-os de medicação. Às vezes, isso enraivecia de tal modo os anti-autoritários que sua reação os fazia aparecer ainda mais assustadores para suas famílias.

Há anti-autoritários que usam drogas psiquiátricas para ajudá-los a funcionar. Ainda assim, frequentemente rejeitam as explicações das autoridades psiquiátricas sobre quais são suas dificuldades. Podem, por exemplo, tomar Adderall (uma anfetamina prescrita para TDAH). Mas sabem que seu problema de atenção não resulta de um desequilíbrio bioquímico do cérebro, mas de um trabalho enfadonho. Da mesma forma, muitos anti-autoritários submetidos a ambientes muito estressantes podem ocasionalmente tomar benzodiazepínicos como Xanax. Pensam que seria mais seguro usar maconha, mas os testes de drogas existentes nas empresas a detectariam…

Minha experiência sugere que muitos anti-autoritários rotulados com diagnósticos psiquiátricos não rejeitam todas as autoridades, mas apenas aquelas que avaliam como ilegítimas. Ocorre que nessa categoria poderia ser enquadrada boa parte das autoridades, em nossa sociedade…

Agindo para manter o Status Quo

Os norte-americanos têm sido convencidos a considerar desatenção, raiva, ansiedade e desespero imobilizante como condições médicas – e a procurar tratamento farmacológico, em vez de soluções políticas. Haveria meio melhor de manter o status quo do que ver em tais reações problemas de quem está mentalmente enfermo – e não atitudes normais, diante de uma sociedade cada vez mais autoritária?

A realidade é que a depressão está altamente associada com dores sociais e financeiras. É muito mais provável tornar-se deprimido quando você está desempregado, subempregado ou em dívida (ler “400% Rise in Anti-Depressant Pill Use”). E é inegável: crianças rotuladas como portadoras de TDAH prestam atenção quando estão sendo recompensadas, ou quando uma atividade é nova, desperta seu interesse ou foi escolhida por elas (documentado em meu livro Commonsense Rebellion).

Numa idade das trevas anterior, as monarquias autoritárias associavam-se às instituições religiosas. Quando a humanidade superou esta fase e abriu-se o Iluminismo, houve uma explosão de energia. Muito da revitalização tinha a ver com arriscar-se diante de instituições autoritárias e corruptas; e com reconquistar confiança na própria mente. Vivemos uma nova era de trevas: mudaram apenas as instituições. Os EUA necessitam desesperadamente de anti-autoritários para questionar, desafiar e resistir às novas autoridades ilegítimas; e para reconquistar confiança em seu próprio senso comum.

Em todas as gerações, há autoritários e anti-autoritários. Embora seja incomum, na história dos EUA, que os anti-autoritários adotem ações efetivas, capazes de inspirar os demais à revolta que resulta em mudanças, de vez em quando um Tom Paine, Crazy Horse ou Malcolm X aparece. Então, os autoritários marginalizam financeiramente quem resiste ao sistema, criminalizam o anti-autoritarismo, psico-diagnosticam os anti-autoritários e produzem drogas de mercado para sua “cura”.



Bruce E. Leving (site: http://www.brucelevine.net/ ) é psicólogo clínico nos EUA, há cerca de três décadas. Conhecido por suas posições anti-hegemônicas, escreve e debate sobre as intersecções entre Sociedade, Política, Cultura e Psicologia. É autor, entre outros livros, de Commonsense Rebellion (2003), Surviving America Depression Epidemic (2007) e Get Up, Stand Up: Uniting Populists, Energizing the Defeated, an Battling the Corporate Elite (2011).


Veja ainda este muito interessante  vídeo sobre os paradigmas da educação, recomendado por Rita Girão






segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

“Perdendo o mundo”: o declínio dos EUA em perspectiva




O declínio dos Estados Unidos entrou, há algum tempo, em uma nova fase: a do declínio autoinfligido. Desde os anos 70 tem havido mudanças significativas na economia dos EUA, à medida que estrategistas, estatais e do setor privado, passaram a conduzí-la para a financeirização e à exportação de plantas industriais. Essas decisões deram início ao círculo vicioso no qual a riqueza e o poder político se tornaram altamente concentrados, os salários dos trabalhadores ficaram estagnados, a carga de trabalho aumentou e o endividamento das famílias também. O artigo é de Noam Chomsky.

Noam Chomsky – Al Jazeera, publicado pela Carta Maior

Aniversários significativos são comemorados solenemente – o do ataque japonês à base da Marinha norteamericana de Pearl Harbor, por exemplo. Outros são ignorados, e podemos sempre aprender importantes lições que eles nos dão de como é possível seguir mentindo adiante. Na verdade, agora.

No momento, estamos errando em não comemorar o 50° aniversário da decisão do presidente John F Kennedy de promover a mais assassina e destrutiva agressão do período pós-Segunda Guerra: a invasão do Vietnã do Sul, e depois de toda a Indochina, deixando milhões de mortos e quatro países devastados, com perdas ainda crescentes causadas pela exposição do país aos carcinogênicos mais letais de que se tem conhecimento, que comprometeram a cobertura vegetal e a produção de alimentos.
O primeiro alvo foi o Vietnã do Sul. A agressão depois se espalhou para o Norte, e então para a sociedade remota do nordeste do Laos, até finalmente chegar ao rural Camboja, que foi bombardeado de tal maneira que chegou ao nível impressionante de ser alvo de todas as operações aéreas aliadas da região do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo as duas bombas lançadas em Hiroshima e Nagasaki. Aí, as ordens de Henri Kissinger estavam sendo obedecidas – “qualquer coisa que voe ou se mova”; uma rara convocação para o genocídio na história.

Pouco disso tudo é lembrado. A maior parte desses massacres é escassamente conhecida para além dos estreitos círculos de ativistas.

Quando a invasão teve início, há cinquenta anos, a preocupação era tão pouca que havia poucos esforços de justificação; dificilmente iam além do impassível apelo do presidente de que “estamos nos opondo, ao redor do mundo, a uma conspiração monolítica e brutal que opera principalmente em meios disfarçados de expansão de sua esfera de influência” e se a conspiração consegue realizar seus objetivos no Laos e no Vietnã, “os portões estarão amplamente abertos”.

Em outro lugar, ele alertou em seguida que “as sociedades leves, complacentes e autoindulgentes estavam para ser varridas para os escombros da história [e] só a força… pode sobreviver”, neste caso refletindo a respeito do fracasso da agressão e do terror estadunidenses em esmagar a independência cubana.

Quando os protestos começaram a crescer, meia dúzia de anos depois, o respeitado historiador militar e especialista em Vietnã Bernard Fall, nenhum pacifista, previu que “o Vietnã como uma entidade histórica e cultural…está ameaçada de extinção…[enquanto]…a sua área rural literalmente morre sob as explosões da maior máquina militar jamais em operação numa área deste tamanho”. Ele estava, mais uma vez, referindo-se ao Vietnã do Sul.

Quando a guerra acabou oito horrendos anos depois, a opinião dominante estava dividida entre aqueles que a descreviam como uma “causa nobre” que poderia ter sido vencida com mais dedicação e o extremo oposto, os críticos, para quem se tratou de “um erro” que se provou altamente custoso. Por volta de 1977, o Presidente Carter chamou pouca atenção quando explicou que “não havia dívida” nossa com o Vietnã porque “a destruição foi mútua”.

Há lições importantes em tudo isso para hoje, mesmo deixando de lado os fracos e derrotados que são chamados para responder por seus crimes.

Uma lição é que para entender o que está acontecendo devemos buscar não apenas criticar os acontecimentos no mundo real, frequentemente dispensados pela história, mas também aquilo em que os líderes e a opinião da elite acreditam, mesmo que com tintas de fantasia. Uma outra lição é que, ao lado dos frutos da imaginação fabricados para aterrorizar e mobilizar o público (e talvez acreditados por aqueles enganados pela própria retórica), há também planejamento geoestratégico baseado em princípios que são racionais e estáveis em longos períodos, porque estão enraizados em instituições estáveis e na agenda destas. Isso também é verdade no caso do Vietnã.

Eu voltarei a isso, só destacando aqui que os elementos persistentes na ação estatal são geralmente bastante opacos.

A guerra do Iraque é um caso instrutivo. Ela foi vendida para um público aterrorizado com as ameaças usuais da autodefesa contra uma formidável ameaça à sobrevivência: a “única questão” que George W. Bush e Tony Blair declararam foi se Saddam Hussein iria encerrar o seu programa de desenvolvimento de armas de destruição em massa. Quando a única questão recebeu a resposta errada, a retórica do governo mudou rapidamente para o nosso “anseio por democracia”, e a opinião pública educada seguiu devidamente o curso; o de sempre.

Mais tarde, à medida que a escalada da derrota no Iraque se tornou difícil de esconder, o governo quietamente concedeu o que estava claro para todo mundo. Em 2007-2008, a administração anunciou oficialmente que um acordo final deve assegurar a permanência de bases militares dos EUA e o direito de operações de combate, no país, e deve privilegiar os investidores estadunidenses na exploração de seu rico sistema energético – demandas que mais tarde foram relutantemente abandonadas diante da resistência iraquiana.

E tudo ficou bastante escondido da maioria das pessoas.

Padronizando o declínio americano

Com essas lições em mente é útil dar uma olhada ao que é destacado na manchete dos maiores jornais de política e opinião, hoje. Peguemos a mais prestigiada das publicações do establishment, Foreign Affairs. A manchete estrondosa da capa de dezembro de 2011 estampava em negrito: “A América acabou?”.

O artigo da capa pedia “corte de gastos” nas “missões humanitárias” no exterior, que estavam consumindo a riqueza do país, para impedir o declínio americano, que é o maior tema nos discursos do ambiente de negócios, que frequentemente vem acompanhado do corolário de que o poder está mudando para o Leste, para a China e (talvez) a Índia.

Agora os principais artigos são a respeito de Israel e Palestina. O primeiro, de autoria de dois altos oficiais israelenses, é intitulado “O Problema é a Rejeição Palestina”: o conflito não pode ser resolvido porque os palestinos se recusam a reconhecer Israel como Estado Judeu – então em conformidade com a prática diplomática padrão: estados são reconhecidos, mas não seus setores privilegiados.

A demanda é dificilmente outra coisa que um novo dispositivo para deter a ameaça de solução política para os assentamentos ilegais que minaria os objetivos expansionistas israelenses.

A posição oposta é defendida por um professor estadunidense tem o título “O Problema é a Ocupação”. No subtítulo se lê: “Como a Ocupação está Destruindo a Nação”. Qual nação? A de Israel é claro. Ambos os artigos aparecem com o título, em cache: “Israel sitiado”.

A edição de janeiro de 2012 lança ainda um outro chamamento para o bombardeio do Irã, agora, antes que seja tarde demais. Alertando contra “os perigos da dissuasão”, o autor sugere que “céticos com relação à ação militar falham em avaliar o verdadeiro perigo que um Irã com armas nucleares imporia aos interesses dos EUA no Oriente Médio e além.

E em suas previsões sombrias imaginam que a cura pode ser pior do que a doença – quer dizer, que as consequências de um ataque estadunidense ao Irã seriam tão ruins ou piores do que se o país conseguisse levar a cabo suas ambições nucleares. Mas essa é uma suposição falsa. A verdade é que um ataque militar visando a destruir o programa nuclear iraniano, se for feito com cuidado, poderia significar para a região e para o mundo uma ameaça muito real e melhorar dramaticamente a segurança nacional dos Estados Unidos no longo prazo”.

Outros argumentam que os custos seriam altos demais e no limite alguns chegam a dizer que um ataque [ao Irã] violaria o direito internacional – como o fazem os moderados, que regularmente lançam ameaças de violência, em violação à Carta das Nações Unidas.

Vamos rever cada uma dessas preocupações dominantes

.

O declínio americano é real, embora a visão apocalíptica reflita a percepção bastante familiar da classe dominante de que algum controle menor ou total implica o desastre total. A despeito desses lamentos piedosos, os EUA persevera como poder dominante mundial por larga margem, e não há competidores à vista, não apenas em dimensões militares, a respeito das quais os EUA reina supremo.

A China e a Índia registraram crescimento rápido (embora altamente desigual), mas permanecem países muito pobres, com problemas internos enormes não enfrentados pelo Ocidente. A China é o maior centro industrial do mundo, mas majoritariamente como uma linha de montagem para as potências industriais avançadas, em sua periferia, e para as multinacionais ocidentais. É provável que isso mude com o tempo.

A indústria em regra provê as bases para a inovação e a invenção, como vem ocorrendo às vezes, na China. Um exemplo que impressionou os especialistas ocidentais foi a tomada chinesa da liderança no mercado crescente de painéis solares, não apenas com base na mão de obra barata, mas no planejamento coordenado e, crescentemente, na inovação.

Mas os problemas que a China enfrenta são sérios. Alguns são demográficos, reportados na Science, o líder dos semanários estadunidenses de divulgação científica. O estudo mostra que a mortalidade caiu bruscamente na China durante os anos maoístas, “principalmente um resultado do desenvolvimento econômico e das melhorias nos serviços educacionais e de saúde, especialmente ao movimento de higiene pública que resultou num golpe drástico à mortalidade por doenças infecciosas”.

Esse progresso acabou com o início das reformas capitalistas no país, há 30 anos, e a taxa de mortalidade desde então tem aumentado.

Além disso, o crescimento econômico chinês recente contou substancialmente com um “bônus demográfico”, uma grande população em idade economicamente ativa. “Mas a janela para o uso desse bônus pode fechar logo”, com um “impacto profundo no desenvolvimento”: “o excesso de mão de obra barata, que é um dos maiores fatores de condução do milagre econômico chinês não estará mais disponível”. A demografia é apenas um dos muitos problemas sérios pela frente. No que concerne a Índia, os problemas são ainda mais graves.

Nem todas as vozes proeminentes anteveem o declínio americano. Na mídia internacional, não há nada mais sério e respeitável que o Financial Times. O jornal recentemente dedicou uma página inteira às expectativas otimistas de que nova tecnologia para extrair combustível fóssil norteamericano pode fazer com que os EUA se torne energeticamente independente, mantendo portanto sua hegemonia por um século. Não há menção ao tipo de mundo que os EUA comandará nesse acontecimento feliz, mas não por falta de evidência.

Quase ao mesmo tempo, a Agência Internacional de Energia reportou que, com o aumento rápido das emissões de carbono dos combustíveis fósseis, o limite de uso seguro será atingido por volta de 2017, se o mundo continuar no atual curso. “A porta está fechando”, disse o economista-chefe da AIE, e em muito breve “fechará de vez”.

Pouco antes, o Departamento de Energia dos EUA informou que as imagens mais recentes das emissões de dióxido de carbono, com “a elevação para o maior índice já registrado”, chegaram num nível mais elevado do que os piores cenários antecipados pelo Painel Internacional de Mudanças Climáticas (IPCC). Isso não é surpresa para muitos cientistas, inclusive os do programa do MIT para mudança climática, que por anos alertou que os prognósticos do IPCC eram conservadores demais.

Esses críticos das previsões do IPCC receberam virtualmente atenção pública nenhuma, ao contrário dos grupos denegadores do aquecimento global, que são apoiados pelo setor corporativo, juntamente a imensas campanhas de propaganda que tem levado os americanos para fora do espectro internacional dessas ameaças.

O apoio das corporações também se traduz diretamente no poder político. A denegação é parte do catecismo que deve ser entoado pelos candidatos republicanos na ridícula campanha eleitoral em curso, e no Congresso eles são poderosos o suficiente para abortar até investigações sobre o efeito do aquecimento global, deixando de lado qualquer ação séria a respeito. Numa palavra, o declínio americano pode talvez ser interditado se abandonarmos a esperança pela sobrevivência decente, prognóstico também bastante real, dado o equilíbrio de forças no mundo.

“Perdendo” a China e o Vietnã

Deixando de lado essas coisas desagradáveis, um olhar de perto para o declínio americano mostra que a China na verdade joga um grande papel nele, tanto como o jogava há 60 anos. O declínio que agora gera tanta preocupação não é um fenômeno recente. Ele remonta ao fim da Segunda Guerra Mundial, quando os EUA tinha metade da riqueza do mundo e dispunha de níveis globais de segurança incomparáveis. Os estrategistas políticos estavam naturalmente bastante conscientes dessa enorme disparidade de poder e pretendiam mante-la assim.

O ponto de vista básico foi apresentado com admirável franqueza num grande documento de 1948. O autor era um dos arquitetos da Nova Ordem Mundial da época, o representante da equipe de Planejamento Político do Departamento de Estado dos EUA, o respeitado estadista e acadêmico George Kennan, um pacifista moderado, dentre os estrategistas. Ele observou que o objetivo político central era manter a “posição de disparidade” que separava a nossa enorme riqueza da pobreza dos outros. Para alcançar esse objetivo, advertiu, “nós deveríamos para de falar de objetivos vagos e… irreais, como direitos humanos, a elevação do padrão de vida e a democratização”, e devemos “lidar com conceitos estritos de poder”, não “limitados por slogans idealistas” a respeito de “altruísmo e o benefício do mundo”.

Kennan estava se referindo especificamente à Ásia, mas as observações dele se generalizam, com exceções, aos participantes do atual sistema de dominação global dos EUA. Ficou bastante claro que os “slogans idealistas” deveriam ser apresentados sobretudo quando dirigidos aos outros, inclusive às classes intelectualizadas, das quais se esperava que os disseminassem.

O plano de Kennan ajudou a formular e a implementar a tomada de controle dos EUA do Hemisfério Oeste, do Extremo Leste e das regiões do ex-império britânico (incluindo os incomparáveis recursos energéticos do Oriente Médio), e o quanto foi possível da Eurásia, sobretudo seus centros comerciais e industriais. Esses não eram objetivos irreais, dada a distribuição do poder. Mas o declínio foi então definido de vez.

Em 1949, a China declarou independência, um evento conhecido no discurso do Ocidente como “a perda da China” – nos EUA, com algumas recriminações amarguradas e o conflito interpretativo a respeito de quem tinha sido o responsável por essa perda. A terminologia é reveladora. Só é possível perder o que em algum momento se teve. A assunção tácita era que os EUA tinham a China, por direito, juntamente à maior parte do resto do mundo, tanto como os estrategistas do pós-guerra pensavam.

A “perda da China” foi o primeiro grande passo do “declínio americano”. Foi o que teve grandes consequências políticas. Uma delas foi a decisão imediata de apoiar o esforço francês de reconquista da sua ex-colônia da Indochina, para que esta também não fosse “perdida”.

A Indochina mesma não era motivo de preocupação maior, a despeito das afirmações de suas riquezas naturais por parte do presidente Eisenhower e outros. A preocupação maior era antes com a “teoria do efeito dominó”, a qual é frequentemente ridicularizada quando os dominós não caem, mas permanece um princípio regulador da política, porque é bastante racional. Para adotar a versão Henri Kissinger dele, uma localidade que cai fora do controle pode se tornar um “vírus” que irá “contagiar”, induzindo outros a seguirem o mesmo caminho.

No caso do Vietnã, a preocupação era que esse vírus do desenvolvimento independente pudesse infectar a Indonésia, que de fato é rica em recursos. E isso pode levar o Japão – o “superdominó”, como o proeminente historiador da Ásia John Dower chamava – a “acomodar” uma Ásia independente como seu centro tecnológico e industrial num sistema que escaparia do alcance do poder dos EUA.

Isso significaria, com efeito, que o EUA tinha perdido a fase Pacífico da Segunda Guerra, na qual lutou para tentar impedir que o Japão estabelecesse uma Nova Ordem na Ásia.

O modo de lidar com um problema desse é claro: destruir o vírus e “inocular” aqueles que podem ser infectados. No caso do Vietnã, a escolha racional era destruir qualquer esperança de desenvolvimento independente bem sucedido e impor ditaduras brutais nos arredores. Essas tarefas foram levadas a cabo com sucesso – embora a história tenha sua própria astúcia, e algo similar ao que foi temido desde então tenha se desenvolvido no Leste da Ásia, a maior parte para consternação de Washington.

A vitória mais importante das guerras da Indochina deu-se em 1965, quando um golpe de estado militar, com o apoio dos EUA, liderado pelo general Suharto significou crimes massivos comparados pela CIA aos de Hitler, Stalin e Mao. A “assombrosa matança massiva”, como descreveu o New York Times, foi acuradamente reportada nos meios dominantes, e com euforia desenfreada.

Foi um “brilho de luz na Ásia”, como observou o comentarista liberal James Reston, no Times. O golpe encerrou as ameaças à demoracia ao demolir o partido político de massas, dos pobres, estabelecendo uma ditadura que registrou as piores violações aos direitos humanos no mundo, e deixou as riquezas do país abertas aos investidores ocidentais. Poucos questionaram que depois de tantos horrores, inclusive a quase genocida invasão do Timor Leste, Suharto ter sido bem recebido pela administração Clinton, em 1995, como “nosso tipo de cara”.

Anos após os grandes eventos de 1965, o Conselheiro para Assuntos de Segurança Nacional de Kennedy e Johnson, McGeorge Bundy refleteria que teria sido sensato acabar com a guerra do Vietnã a tempo, com o “vírus” virtualmente destruído e, o principal, o dominó solidamente no lugar, no esteio de outras ditaduras apoiadas pelos EUA pela região.
Procedimentos similares são rotineiramente seguidos em outros lugares. Kissinger estava se referindo especificamente à ameaça da democracia socialista no Chile. Essa ameaça acabou em outra data esquecida, que os latino-americanos chamam de “O Primeiro 11 de Setembro”, que em violência e efeitos nefastos excedeu em muito o 11 de Setembro comemorado no Ocidente. Uma ditadura viciosa foi imposta ao Chile, como uma parte da praga de repressão brutal que se espalhou pela América Latina, chegando até a América Central, nos anos Reagan. 

Esse vírus tem gerado preocupações profundas aqui e ali, inclusive no Oriente Médio, onde a ameaça de um nacionalismo secular tem consternado os estrategistas britânicos e estadunidenses, induzindo-os a apoiar o fundamentalismo islâmico a opor-se a isso.

A concentração da riqueza e o declínio americano

Mesmo com essas vitórias, o declínio americano continuou. Por volta de 1970, a parte da riqueza do mundo dos EUA saltou para 25%, basicamente onde está hoje, concentração ainda colossal, mas bastante inferior àquela de fins da Segunda Guerra. Nessa época, o mundo industrial era “tripolar”: a base norte americana, dos EUA, a europeia, da Alemanha, e a do Leste da Ásia, já a região industrial mais dinâmica, naquele tempo com base no Japão, mas hoje incluindo as ex-colônias japonesas de Taiwan e o Sul da Coreia, e mais recentemente a China.

Nesse período o declínio americano entrou numa nova fase: a do declínio autoinfligido. Desde os anos 70 tem havido mudanças significativas na economia dos EUA, à medida que estrategistas, estatais e do setor privado, passaram a conduzi-la para a financeirização e à exportação de plantas industriais, levada a cabo em parte pelo declínio da taxa de lucro na indústria doméstica. Essas decisões deram início ao círculo vicioso no qual a riqueza se tornou altamente concentrada (dramaticamente nos 0,1% da população), levou à concentração de poder político, e então a uma legislação que o levou adiante, no que concerne à tributação e outras políticas fiscais, à desregulação, às mudança nas regras da administração corporativa – o que permitiu imensos ganhos para os executivos – e por aí vai.

Enquanto isso, para a maioria, os salários reais foram majoritariamente estagnados e ao povo só restou aumentar a carga de trabalho (muito além da europeia), a dívida insustentável e as repetidas bolhas, desde os anos Reagan; criando riquezas de papel que desapareceram inevitavelmente quando a bolha estourou (e os perpretadores foram resgatados pelos contribuintes). Em paralelo a isso, o sistema político foi cada vez mais fragmentado, enquanto ambos os partidos mergulharam cada vez mais nos bolsos das corporações, com a escalada do custo das eleições (os republicanos ao nível do absurdo e os democratas – agora majoritariamente os “ex-republicanos moderados” – não ficaram muito atrás).

Um estudo recente do Instituto de Política Econômica, que tem sido a maior fonte de dados respeitáveis sobre o desenvolvimento, intitula-se Failure by Design [no contexto, algo como Fracasso por Ecomenda]. A frase “by design” é acurada. Outras escolhas eram certamente possíveis. E como mostra o estudo, o “fracasso” tem um corte de classe. Não há fracasso para os “designers”. Longe disso. Antes, as políticas fracassaram para a imensa maioria, os 99% na imagem dos movimentos Occupy – e para o país, que tem declinado e irá continuar a fazê-lo, sob essas políticas.

Um fator que o explica é a transferência das plantas industriais. Como ilustra o exemplo do painel solar, mencionado acima, a industrialização tem a capacidade de promover as bases e o estímulo para a inovação, levando a estágios mais avançados de sofisticação na produção, no design e na invenção. Isso, também, está sendo terceirizado, o que não é um problema para os “mandarins do dinheiro”, que cada vez mais mandam na política, mas é um sério problema para o povo trabalhador e as classes médias, e um desastre real para os mais oprimidos, os afroamericanos, que nunca escaparam do legado da escravidão e de sua mais feia consequência, cuja magra riqueza desapareceu virtualmente depois do colapso da bolha imobiliária, em 2008, originando a mais recente crise financeira, a pior até agora.

(*) Noam Chomsky é professor emérito do Departamento de Linguística e Filosofia do MIT. É o maior linguista do mundo e um dos mais, senão o mais rigoroso e consequente anarquista vivo.



Tradução: Katarina Peixoto



A agonia do euro e a cegueira dos políticos



Por Luiz Sergio Guimarães
Para o Valor, de São Paulo
 
O título do livro do jornalista belga Johan Van Overtveldt não é mais uma profecia em um ano saturado de augúrios sombrios.


"O Fim do Euro - A História da Moeda da União Europeia e Seu Futuro Incerto" sustenta que o euro, dez anos depois do seu nascimento, já não respeita mais os moldes em que foi gestado. O euro primordial morreu. Independentemente do que vier a acontecer na Europa, aquilo que sobreviver será outra moeda. A grande dúvida atual é se haverá no futuro alguma que ainda venha a carregar esse nome.

Antigo crítico da forma mais política do que econômica como foi conduzida a união monetária, Overtveldt, atualmente diretor-geral da VKW Metena - usina de ideias dedicada a estudos econômicos e sociais - constata no livro que "não é boa a sensação de saber que minhas primeiras objeções e comentários críticos foram confirmados pela realidade". Mas ele não foi uma voz crítica isolada. Muitos previram o fracasso da união monetária. Seria impensável submeter a uma mesma política monetária países com metas distintas de crescimento, mercados de trabalho com amarras ancestrais irremovíveis e políticas fiscais historicamente frouxas. A moeda única só daria certo se houvesse um governo único e um Tesouro único sob o guarda-chuva de uma mesma Constituição. Como se fossem iguais, alemães, franceses, espanhóis, italianos, irlandeses, portugueses, gregos e cidadãos de outros dez países europeus menores teriam, num contrato constitucional, os mesmos direitos, privilégios, obrigações e compromissos. E cada um falando uma língua própria. Se a união monetária começou a fazer água antes mesmo de comemorar dez anos, como entrelaçar povos culturalmente milenares, ciosos de sua soberania e orgulhosos de sua identidade nacional, e que no passado viviam em guerra?

Os céticos foram obrigados a engolir suas advertências até 2008. A zona do euro prosperava a despeito do estouro da bolha das pontocom, dos ataques terroristas de 11/9, das guerras no Afeganistão e no Iraque. Mas aí, em setembro de 2008, o Lehman Brothers quebrou, e tudo mudou. A onda de choque vinda dos Estados Unidos exibiu a fragilidade estrutural do euro, realçando as dessemelhanças entre os seus 17 membros e sufocando os esforços no sentido de forjar economias cada vez mais parecidas. A contração mundial de crédito acabou com o mito de que era possível fixar a mesma taxa de juros para países tão díspares. O juro é o preço do dinheiro. E, como este é sensível a qualquer coisa, não pode ser tabelado. O dinheiro tem um preço na Alemanha e outro bem diferente na Grécia. Antes da crise, o euro mascarava a discrepância. Em 2008, a maquiagem derreteu.

A solução defendida pelos governos mais ricos da região é a de levar os termos da união até as últimas consequências. Alemanha e França propõem a união fiscal. Como os entraves estruturais são tremendos, tal intensificação de laços pressupõe mais sofrimentos às populações dos países já em crise aberta. O ajustamento requer esforços redobrados na contenção de despesas, redução de salários e aumento de impostos. Por ter enormes custos políticos, tal unificação fiscal é morosa. O seu aceno ao mercado não consegue acalmar os investidores. "Enquanto isso, os bancos europeus, grandes detentores das dívidas soberanas impagáveis, sangram, prejudicando o funcionamento do sistema financeiro internacional e ameaçando o crescimento global", diz a professora de economia da PUC-Rio, Monica Baumgarten de Bolle, no prefácio do livro.

A impossibilidade de se ver claramente o futuro da moeda única deriva da oposição feroz entre os interesses da Alemanha e dos demais países. A Alemanha resiste, para assegurar a sobrevivência do euro, em rediscutir os tratados e as leis que regulam o acordo. Berlim se opõe a que o Banco Central Europeu (BCE) adquira as dívidas dos países sem crédito na praça e que se crie algum mecanismo de transferência de recursos que socialize os desequilíbrios fiscais.

A raiz do impasse reside em que, como mostra Overtveldt, para que os alemães permaneçam no euro precisam se tornar mais "europeus", quando eles querem justamente o oposto, que os europeus se tornem mais "alemães". Os primeiros anos do euro beneficiaram sobremaneira a economia alemã. A expansão de renda gerada na área da moeda única ampliou os mercados compradores de produtos alemães. Na onda do euro, enquanto a Alemanha ganhava competitividade, outros países embarcavam na canoa furada do crédito farto vinda dos Estados Unidos. Hoje, os enfraquecidos irmãos de moeda já não são mais mercados cobiçados pelos alemães. São, ao contrário, fonte de custos e dores de cabeça. No horizonte enevoado, o jornalista belga enxerga claramente a saída da Alemanha da zona do euro. Aberta a porta, sairiam depois a Holanda, a Áustria e a Finlândia. Foi bom enquanto durou.

A Alemanha quer largar o euro? Essa opção implicaria uma supervalorização do marco, um severo golpe na máquina exportadora do país. Seria como um suicídio econômico. A Alemanha quer, na verdade, que os endividados, a começar pela Grécia, abandonem o clube dos 17. Esse caminho significaria pesada desvalorização das novas moedas em substituição ao euro e calote. Os governos sólidos cuidariam da solvência dos seus bancos privados. A alternativa do expurgo não seria o esfacelamento da moeda única, mas o seu fortalecimento, com um menor grupo de países, fiscalmente ajustados. Mas Overtveldt não acredita que a Alemanha terá paciência para esperar.

Enquanto uma solução destinada a parecer definitiva não vem, medidas paliativas são aventadas toda semana: empréstimos franco-germânicos condicionados a rigorosas reduções dos déficits fiscais dos endividados; calotes administrados, capazes de baixar o endividamento para algo entre 50% e 60% do PIB; e ajuda financeira aos bancos credores, para que eles mesmos possam resolver seus rombos de caixa diretamente com os governos devedores.

"Os Estados-membros da zona do euro devem mudar as regras do jogo, para que a união monetária sobreviva, mas os líderes políticos da Europa não têm agido com determinação", diz Overtveldt. Por quê? Porque custam a acreditar que o problema é o euro. Culpam a especulação e a ganância dos mercados, as políticas irresponsáveis de alguns países-membros, as agências de rating... Não admitem que a falha é estrutural e sistêmica. Até quando?



"O Fim do Euro - A História da Moeda da União Europeia e Seu Futuro Incerto"

Johan Van Overtveldt. Campus. 248 páginas, R$ 69,90



Como fazer a divisão de imóveis entre os herdeiros?



Por Marcelo Henriques de Brito - Valor 27/02

Minha avó está com 85 anos, é viúva e possui a casa onde mora e mais alguns terrenos. É interessante fazer a sucessão enquanto ela ainda está viva ao invés de esperar a sua morte e fazer o inventário? Meu pai tem dois irmãos que também são herdeiros, como eles podem resolver a questão dos valores diferentes entre os imóveis? Quais impostos incidem sobre esses eventos?

Marcelo Henriques de Brito, CFP:

A fim de se esquivar de um testamento e eliminar um inventário, cuja duração pode ser longa e indeterminada, além de acarretar gastos com advogados e custas judiciais, existe a alternativa da doação, em geral com reserva de usufruto, o que permitiria à sua avó viúva usar e fruir cada imóvel enquanto viver, ficando os donatários com a chamada "nua propriedade".

Sua avó poderá ainda transferir os imóveis impondo condições: impenhorabilidade (o imóvel não poderá ser dado em garantia de pagamentos futuros a credores), incomunicabilidade (nenhum cônjuge dos donatários fará jus ao imóvel em caso de separação), reversão (ocorrendo o falecimento de um donatário, o imóvel reverte em favor do doador, não sendo herdado pelos sucessores do donatário falecido) e inalienabilidade temporária ou vitalícia (o imóvel não poderá ser vendido ou transferido pelos donatários). E mais, para evitar discussões sobre a avaliação e o potencial de valorização de cada imóvel até o fim do usufruto, é possível repartir igualmente a "nua propriedade" de cada imóvel entre seu pai e seus dois tios, considerando os três irmãos como os únicos herdeiros necessários, conforme definido pela legislação brasileira.

Acontece que os donatários poderão se arrepender do vínculo estabelecido, denominado "condomínio", por virem a ter interesses e expectativas distintas sobre o que fazer com cada imóvel, nomeadamente quanto aos valores e às ocasiões para locação ou venda, após o falecimento do doador. É então possível promover uma "extinção de condomínio" com o eventual pagamento de tributos sobre diferenças de valores recebidos pelos donatários. Havendo acordo, a escritura pública de extinção de condomínio é realizada em um Cartório de Notas com a orientação de um tabelião ou de um escrevente autorizado.

Um destes profissionais também deve orientar sobre a elaboração da escritura de doação, além de solicitar a documentação relevante, o que inclui a guia quitada do "Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação". A forma de recolhimento do ITCMD pode variar entre estados da federação, assim como a alíquota, que em geral é 4%. A base de cálculo decorre tanto do valor declarado na escritura de doação para efeitos fiscais quanto da aceitação daquele valor pela Secretaria da Fazenda. A escritura de doação precisa ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis. Assim, há custas a serem pagas ao tabelião e ao oficial do registro de imóveis. Haverá um gasto adicional para cancelar o registro do usufruto com a morte do usufrutuário. Todavia, esta opção pode ser melhor do que um inventário, se os herdeiros se entenderem quanto à partilha dos bens de um parente querido.

Infelizmente, certas mortes fazem com que aflorem ressentimentos e acusações que podem abalar o relacionamento familiar, além de arranhar a reputação do falecido. Estes momentos de rivalidade já foram retratados em peças como "A Partilha", de Miguel Falabella, e filmes como "Rain Man", de Barry Levinson.

Verifique se cabe a você iniciar o debate sobre como repartir a fortuna de sua avó e como sua iniciativa pode impactar a relação familiar, mesmo que suas intenções sejam construtivas. Lembre que o assunto não é só financeiro. Cada caso precisa ser analisado e parentes devem perceber que "as boas contas fazem os bons amigos". Acontece que outro provérbio indica que "a sorte faz os parentes, a escolha faz os amigos".

Marcelo Henriques de Brito é planejador financeiro pessoal e possui a Certificação CFP (Certified Financial Planner) concedida pelo Instituto Brasileiro de Certificação de Profissionais Financeiros (IBCPF) E-mail: consulta@probatus.com.br



As respostas refletem as opiniões do autor

domingo, 19 de fevereiro de 2012

O jogo dos acasos

Ferreira Gullar


É que viver é assim: o acaso promove os encontros e a necessidade os integra em nossa vida ou não

Foi por acaso que Valdomiro veio a se chamar Valdomiro, já que, por decisão da mãe, ia chamar-se Valdir. Sucedeu que o pai, a caminho do cartório onde faria o registro de seu nascimento, em vez de seguir por uma rua, seguiu por outra e, nessa, deparou-se com a seguinte pichação num muro: "Vote em Valdomiro, amigo dos pobres".

Foi o bastante para mudar de ideia e pôr no filho o nome do político que admirava. Mas não disse nada a sua mulher, que ficou chamando Valdomiro de Valdir até o dia em que descobriu o engano. E foi também por acaso que, em vez de estudar sanitarismo, estudou contabilidade, matéria em que se formou e passou a ganhar a vida.

"Meu sonho era ser sanitarista, mas o professor que ensinava essa matéria morreu no dia mesmo em que me matriculei no curso, que foi cancelado temporariamente. Como Jorginho, meu primo, havia escolhido estudar contabilidade, segui a sugestão dele e, assim, me tornei contador", contou ele certa vez.

Não menos inesperado foi seu encontro com a moça que se tornaria sua mulher. Aconteceu numa festa de São João, numa cidade vizinha; festa à qual não iria até que a família inteira seguiu para lá. De má vontade concordou em ir somente porque não queria ficar sozinho em casa. Pois bem, ali conheceu Julinha, que também não era da cidade e só foi a convite de uma irmã. Amor à primeira vista, pois já se despediram com encontro marcado para a semana seguinte, na cidade dele.

Pois é, mas isso não teria maiores consequências se com ela não houvesse ocorrido um fato que viria precipitar seu namoro com Valdomiro: rompera recentemente um noivado que já durava vários anos, devido a suas hesitações. Poucos meses antes de conhecer Valdomiro, tomara coragem e rompera: "Eu gostava dele como amigo, mas não para ser meu marido".

Foi um escândalo nas duas famílias, na dela e na do noivo, que já se tinham como uma só. Para livrar-se do incômodo que essa situação lhe causava, passou a viajar sempre que podia, mesmo que fosse para passar apenas alguns dias distante daquilo. A decisão de casar-se com Valdomiro foi certamente um modo de pôr fim àquela situação. É que viver é assim mesmo: o acaso promove os encontros, e a necessidade os integra em nossa vida ou não. Isso significa que, naquelas circunstâncias, ela se casaria com qualquer um? Não se sabe. A verdade é que com Valdomiro ela se casou.

E mudou a vida dele que, de fato, não estava à procura de uma mulher. Ou, se estava, não se tinha dado conta, mesmo porque, muitas vezes, são os acontecimentos que nos revelam o que estávamos buscando sem o sabermos. A ida do casal para o Rio foi facilitada por um tio de Julinha, que tinha uma firma de representação na rua da Alfândega. Esse tio arranjou para Valdomiro fazer alguns bicos, ora na sua própria firma -que não era grande-, ora em outras que negociavam com ele.

Valdomiro alugou um pequeno apartamento no Catete, e Julinha conseguiu um emprego num salão de beleza ali perto. Aos domingos, pegavam o metrô e iam à praia de Copacabana tomar banho de mar.

E foi na praia que ele conheceu um cara simpático, com quem passou a jogar frescobol e que o convenceu a fazer um curso de aperfeiçoamento profissional para conseguir um emprego numa firma importante que lhe pagasse bem e onde pudesse fazer carreira. O curso era noturno e dado num edifício do centro da cidade, próximo ao Theatro Municipal, mais precisamente no edifício Liberdade, que ficava na rua 13 de Maio, 44. As aulas começariam dali a um mês.

Acertou tudo, a primeira aula seria no dia 25 de janeiro. Mas aquele foi um dia estafante e, se dependesse de sua vontade, ficaria em casa, deitado no sofá, vendo televisão. Chegou a dizer isso a Julinha, mas ela, que via naquele curso um caminho para melhorarem de vida, convenceu-o a ir à tal aula.

Vestiu-se e saiu para tomar o metrô que o levaria à estação Cinelândia, próxima à rua 13 de Maio, mas tamanho era seu cansaço que adormeceu e só foi acordar na estação Uruguaiana. Ansioso, tomou o trem de volta e desceu no Largo da Carioca, no momento exato em que o prédio para onde ia desabava.



terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Instituto Alana

Nunca tinha ouvido falar no Instituto Alana até ler uma reportagem numa revista sobre um seminário em que o BC também participou, representado pela colega Juliana Barral, da UniBacen.


Quando a criança liga a TV...

Lais Fontenelle, do Instituto Alana, apresentou estes dados no seminário:

“A tevê infantil tem um anúncio a cada dois minutos e a criança brasileira passa, em média, cinco horas na frente do aparelho. Já na sala de aula, efetivamente, elas passam 3 horas e 15 minutos”.

“Hoje em dia, é comum ouvir de crianças de menos de cinco anos frases como: “Compra, mãe!”, “Se não tiver dinheiro, pegue no banco!”, “Pague com cartão!”.

“Bastam 30 segundos para uma marca de alimentos influenciar uma criança. E mais: 70% das crianças de três anos reconhecem o símbolo do McDonald’s, mas apenas metade sabe seu sobrenome”.

Eis o site do Instituto Alana
acoelhof

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O homem que se reinventou

Na mesa com Valor - 10/02

Unanimidade ele nunca foi. Mas é impossível ser indiferente a esse personagem que desde 1967 participa ativamente da vida econômica e política do país.

Antônio Delfim Netto, 84 anos, é um homem que se reinventou. Foi ministro nos governos dos generais Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo e é um dos principais conselheiros dos governos da era PT.

Inimigos ele afirma que não tem.

"Nunca tive nenhum. Os economistas com quem trabalhei continuam grandes amigos. Tem pessoas com quem eu tenho outra relação, mas não de inimizade. E há alguns que pretendem que eu seja inimigo. Mas eu não..." Críticos, sim.

Ele minimiza: "São divergências no campo profissional".

Discretíssimo na vida pessoal, Delfim escondeu os 18 dias de coma e os 60 dias que passou internado no Incor (SP), há um ano e meio, com embolia pulmonar e um problema cardíaco que lhe rendeu dois 'stents' e quatro meses de ausência de suas atividades cotidianas.

"Foi um negócio terrível!", diz. Do coma, brinca: "Não vi o tal túnel com a luz branca. Foi uma decepção!".

Este "À Mesa com o Valor" começa por volta das 11 horas no escritório do ex-ministro e se estende, almoço adentro, até as 14h30 na cantina Roma, na rua Maranhão, em Higienópolis. Delfim criou a Consultoria Ideias quando saiu do governo, em março de 1985.

É uma agradável casa de dois andares, próxima ao estádio do Pacaembu, de decoração espartana. Nas paredes da sala onde trabalha há uma coleção de caricaturas suas, publicadas nos jornais quando era ministro. Os cartunistas costumavam chamá-lo de "O Gordo".

Totalmente avesso a exercícios físicos, Delfim diz que, após a doença, recebeu dos médicos a recomendação para fazer dieta e ginástica, a mesma orientação que havia recebido nos anos 60 do século passado para tratar de uma gota que o acompanha desde os 33 anos. Até então, tudo que Delfim havia feito fora na infância. "Quando menino, eu remava no rio Tietê", conta.

Em 1967, já ministro da Fazenda, ele até que tentou voltar a remar, por prescrição médica. Comprou o equipamento e o levou para o apartamento, em Copacabana.

"No segundo movimento do remo, começaram a cair sobre mim as contas do balanço de pagamentos. No momento em que eu estava usando só as mãos, os problemas brotavam na minha cabeça".

Desistiu.

"Se eu tivesse continuado a fazer exercício, ia ter um stress de louco."

Para Delfim, 1967 foi um ano particularmente difícil. Aos 39 anos, ele chega ao Rio para assumir o Ministério da Fazenda (que, na época, funcionava principalmente na ex-capital da República), a convite do presidente Costa e Silva. A ideia disseminada na elite carioca, conta ele, era que "aquele paulista caipira não aguentaria até o fim do ano". O primeiro grande teste foi em maio, mês em que venciam 100 milhões de ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional).

"Diziam que eu não conseguiria rolar essa dívida e cairia ali mesmo." Passou maio, junho, agosto e a dívida pública foi sendo rolada pelo mercado.

"Eu sempre tive bons amigos no mercado."

Essa proximidade também lhe custou dissabores.

"Diziam, por exemplo, que eu era sócio do Bradesco, né? Diziam que eu era sócio do Geraldo Bordon (do frigorífico Bordon). Diziam que eu era sócio de uma porção de gente", fala o ex-ministro.

Banqueiros como Amador Aguiar, Gastão Vidigal, Moreira Salles "sempre foram extremamente cooperativos com o governo. Se o governo queria baixar a taxa de juros, conversava com eles e o que a gente prometia, cumpria".

Neto de imigrantes italianos, Antônio Delfim Netto nasceu e cresceu no Cambuci, bairro operário de São Paulo. Dona Maria Delfim, sua mãe, costurava para fora. "E eu ganhava um dinheirinho entregando os vestidos." O pai, José Delfim, trabalhava na CMTC, empresa de transportes da prefeitura de São Paulo.

Tem duas irmãs mais novas, Filomena (nome da avó) e Terezinha, uma porção de sobrinhos e, agora, o neto Rafael, de um ano e meio, filho de sua única filha, Fabiana. O nome da filha remete à juventude, quando, segundo conta, era socialista fabiano, reformista, corrente que, afirma hoje, "trazia um equívoco fundamental, no qual eu também acreditava: de que o Estado deveria ser proprietário dos meios de produção".

Foi a leitura da "Teoria dos Preços", de George Stigler, que o fez mudar de ideia.

Delfim foi avô aos 83 anos. "É uma experiência absolutamente extraordinária! Sublime! A última coisa que eu podia pensar na minha vida. Isso me diverte mesmo!". Para ficarem próximos, a filha está morando no mesmo prédio que ele. "Eu moro no 6º andar e eles no 14º". Sobre uma mesa lateral, na sua sala, há uma única foto, dele com o neto no colo.

"Passei uma infância muito gostosa", diz. Fez o curso primário num grupo escolar e contabilidade na Escola Técnica Carlos de Carvalho. O sonho era engenharia, mas o dinheiro da família era curto para um curso puxado, que não lhe permitiria trabalhar meio período. Optou por economia na Universidade de São Paulo. Era a terceira turma da FEA - Faculdade de Economia e Administração da USP. Chegou, por concurso, a professor catedrático em 1963, responsável pelas disciplinas análise macroeconômica, contabilidade nacional, teoria do desenvolvimento econômico, economia brasileira e planejamento governamental. Foi o primeiro aluno da FEA a tornar-se um de seus catedráticos e da escola só se desligou para se aposentar.

"É uma coisa fantástica. Eu gastei 6 mil réis com um selinho para, depois, viver a vida inteira na universidade", conta. O selo era colado no título de admissão. "Aquilo garantiu a minha vida." Provavelmente, esteja aí o início da profunda ligação do ex-ministro da Fazenda, da Agricultura, do Planejamento e do deputado federal por cinco mandatos consecutivos, com o Estado.

Em retribuição, Delfim doou à USP sua biblioteca de quase 300 mil títulos de economia, matemática, história, geografia, antropologia e estatística.

"Me dá vontade de dar risada quando alguém diz: 'Mas vejam! É um absurdo esse negócio de educação e saúde gratuitos!'. Você até pode discutir se quer cobrar mais de um sujeito ou de outro. Mas a antropologia ensina: o macaco virou homem pelo conhecimento; e o homem só ganha a humanidade se tiver saúde".

Antropologia é o "hobby" do economista. Dos tempos em que era jovem e frequentava um boteco na avenida Angélica, do seu amigo Horácio Coimbra, e bebericava com Paulo Vanzolini e Luís Carlos Paraná, restaram boas lembranças. "O primeiro disco que o Carlos Paraná gravou foi financiado pelo Café Cacique, do Horácio", recorda.

Boêmio mesmo, nunca foi. "Sempre gostei de estudar." É o que mais gosta de fazer ainda hoje.

Por quase quatro horas, Delfim falou com entusiasmo sobre os mais variados temas. A crise na Europa, a origem do homem, religiosidade, a democracia e os bons tempos em que estudou na USP.

"O que mais me fascina é a origem do homem. Antropologia é a única coisa que leio fora da economia. Sou um amador, me entende? Mas tenho algumas convicções sobre por que o homem está aqui."

Tem grande admiração pela parte antropológica da obra de Karl Marx.

"O homem é um animal que produz trabalho, como a abelha faz o mel. Suas mãos produzem você, e o seu cérebro é produzido pelas suas mãos."

O homem saiu da África há 150 mil anos e se dividiu dessa forma porque "somos animais territoriais; isso aqui é meu e ninguém mexe". Para os economistas, diz, é fundamental o entendimento de que o ser humano é muito mais complexo do que os modelos que eles usam.


O assunto anima Delfim. "Na minha opinião, tem duas teorias absolutamente fantásticas: o darwinismo e a física quântica. O Darwin a gente está começando a entender do que se trata; a física quântica dá certo, mas ninguém sabe por quê".

Max Planck, prêmio Nobel de física em 1918, dizia: A física quântica ninguém sabe o que é, mas funciona. A economia, todo mundo sabe o que é, mas não funciona.

- Na sua visão, de onde viemos?

-"Somos a natureza tentando saber quem ela é.

- E para onde vamos?

- Aí é uma coisa hegeliana. É mais complicado...

- O senhor acha que há vida após a morte?

- Não sei. Mas acredito que tem alguma coisa que controla o mundo. Tenho minha própria religiosidade e acho que é uma ligação que não tem nada que ver com o racional. Eu gosto desse ponto de vista, acho que dá conforto.

Ele retoma a questão do processo civilizatório e conclui que a evolução é rumo a uma sociedade republicana, democrática.

"Tenho uma grande confiança na dialética entre a urna e o mercado. Cada vez que a urna exagera nos benefícios, o mercado vem e pune. E cada vez que o mercado exagera, vem a urna e pune."

Num momento em que a crise, tanto nos Estados Unidos quanto na zona do Euro, leva pensadores e movimentos sociais a questionar o regime capitalista e a prever seu fim, o ex-ministro não crê em alternativas.

"O capitalismo não foi inventado por ninguém. O homem foi procurando formas de produzir sua sobrevivência da maneira mais econômica possível. O capitalismo não tem fim. De vez em quando ele quebra, se recupera e sai da crise diferente de como entrou. O que se chama de capitalismo, portanto, nunca é a mesma coisa." E conclui: "Cada vez que um cérebro peregrino inventa uma nova forma de organização, termina em porcaria".


A crise europeia entra na conversa.


"Ah, essa crise, na minha opinião, vai confirmar a nossa teoria. Ou a Europa se salva como uma federação ou vai voltar para a barbárie." Na hipótese de destruição do euro, o futuro da Europa é sombrio. Se isso ocorrer, o que não acredita, "esses países todos daqui a 20 anos vão fazer uma guerra".

Haveria o risco de a Europa estar caminhando para uma fase pré-Tratado de Versalhes?

"Se você permitir o desastre, tá tudo perdido! Não posso pedir para o grego: descoma o que você comeu. Não tem como! E você precisa do processo democrático para aperfeiçoar esse sistema. Ele não será aperfeiçoado na marra, a não ser que apareça um Napoleão, ocupe todos os 17 Estados e ponha ordem na casa. Aí, na Itália também vai aparecer um Mussolinizinho...."

Akihiro Ikeda e Gustavo Silveira participam do encontro com o Valor. Ikeda é economista e ex-aluno de Delfim e de Mário Henrique Simonsen. Ambos acompanham o ex-ministro há quatro décadas. Silveira começou como assessor de comunicação em 1967, quando foi com Delfim para a Fazenda, no Rio. Ikeda incorporou-se ao grupo pouco depois. Formou-se, ali, o que os cariocas chamavam de "Delfim boys". Eram todos ex-alunos: Affonso Celso Pastore, Paulo Yokota, Milton Dallari, Eduardo de Carvalho, Flávio Pécora, Carlos Antônio Rocca, Carlos Viacava, Carlos Alberto Andrade Pinto, Nelson Mortada, dentre outros.

De novo, Delfim se reporta ao momento em que desembarcou com seus ex-alunos no Rio, em 1967. "No Rio, era o seguinte: chegou esse gordo, italiano e vesgo. Nós vamos matá-lo em seis meses, tá certo? E além de tudo tem uns animais estranhos com ele, uns japoneses." Por anos e até hoje ainda se fala nos "Delfim boys", em referência àquele grupo e a outros nomes que foram se incorporando. Ikeda, Yokota e Gustavo trabalham com o ex-ministro na Ideias.

Seguimos, Delfim, Ikeda e a repórter para o almoço. O maître da cantina Roma, Luís, o mesmo que serve o ex-ministro há 26 anos, já o aguardava.

"Você tem uma truta bonita aí?", pergunta. Luís confirma e explica que o prato que Delfim pede não está no cardápio. É uma truta cozida, levemente temperada no sal, azeite, cebola, pimentão e louro. Acompanha espinafre ao vapor. De entrada, grão de bico e champignon.

Após participar de dois governos militares e patrocinar o "milagre econômico" - período em que as taxas de crescimento da economia brasileira eram exuberantes - ele volta para São Paulo e para a USP, com planos para uma carreira política. Em 1975, um ano após a posse do general Ernesto Geisel na Presidência da República (1974-1979), Delfim é enviado a Paris onde, por três anos, assume o comando da embaixada brasileira. O exílio concebido por Geisel tinha como propósito abortar a pretensão do ex-ministro de candidatar-se ao governo de São Paulo e vir a ser, eventualmente, candidato à Presidência da República.

São desse tempo as primeiras notícias sobre a existência do "Relatório Saraiva", documento a que ninguém nunca teve acesso. Nele, o coronel Raimundo Saraiva, então adido militar em Paris, fazia uma série de denúncias de corrupção, como a cobrança de comissões sobre empréstimos de bancos franceses pela embaixada então chefiada por Delfim. O coronel Saraiva mandou para a 2ª Seção do Estado-Maior do Exército um informe dizendo que Delfim teria ligações com o irmão do presidente da França, Giscard D'Estaing, e que estaria recebendo 10% de comissão pelos financiamentos obtidos junto a bancos franceses. Tal relatório nunca foi divulgado e o assunto morreu de inanição.

O que era o relatório Saraiva?.

"Na verdade, era um bando de mentiras. Simplesmente, fogo amigo. Dizia que nós tínhamos recebido comissão."

Delfim acredita que esse documento foi obra dos militares da linha dura. "Se eles tivessem tomado o poder, ia ser muito pior do que se o partido comunista tivesse tomado o poder. Ia ser uma Cuba ainda mais subdesenvolvida. Havia uma luta interna no Exército. O Exército era como o PT. São grupos antropófagos. Quando você põe um em presença do outro, você tem uma vantagem: um come o outro."

O coronel Mário Andreazza, ministro do Interior e tocador de obras do porte da ponte Rio-Niterói e da Transamazônica, contemporâneo de Delfim no governo militar e amigo, ganhou fama de corrupto também por obra dessa facção do Exército, que não queria vê-lo candidato à Presidência, comenta Delfim.

"Vou lhe dizer, o Andreazza morreu em São Paulo. Uns amigos se cotizaram pra poder mandar o corpo num aviãozinho para o Rio. Diziam o diabo do Andreazza. Ele tinha um apartamento, que a mulher dividia com os filhos, e isso é tudo que eles têm. Diziam que o filho do Costa e Silva tinha feito a negociação de compra dos "Mirage" e recebido comissão, tá certo? Foi morar com a mãe. O grande problema é que essas coisas caminham, e você só fica sabendo a verdade 10 anos, 20 anos depois. Sei até dos filhos do Médici (general Emílio Garrastazu Médici, ex-presidente). Um morreu e o outro é professor aposentado pela UFRJ".

Era um mundo diferente, diz. "Eles tinham uma noção clara do dever. Por que nunca nenhum deles ficou um dia a mais? Você acha que o Médici, com a popularidade que adquiriu no final, se quisesse ficar mais 4 anos não teria ficado? Só que não, foi uma missão, a missão terminava no dia tal e ele foi embora."

Em 1979, Delfim volta para o governo como ministro da Agricultura da gestão Figueiredo. Embora tenha ficado para a história que ele derrubou Mário Henrique Simonsen do Ministério da Economia (na época, Fazenda e Planejamento se juntaram numa única pasta), para assumir o comando da economia, sua versão é outra. "A despeito de tudo que dizem, o Mário foi um grande amigo meu. Ele era uma figura muito interessante. Um gênio."

Paul Volcker foi indicado para o comando do Federal Reserve (Fed), o Banco Central americano, em meados de 1979. Simonsen conhecia Volcker. Ambos haviam trabalhado no Citibank.

Delfim conta: "Um dia, entrei na sala do Mário e ele me disse: 'Quebramos, Delfim! Quebramos! Eu conheço o Volcker e onde ele vai pôr a taxa de juros ninguém sabe!', Com a dívida que fizemos no governo Geisel.... não temos como pagar."

Simonsen pediu demissão no dia 10 de agosto de 1979 sem fechar a proposta de lei orçamentária para o ano seguinte, que tinha que ser encaminhada ao Congresso até o dia 31.

"O Figueiredo adorava o Mário! Figueiredo só enlouqueceu quando soube, cinco minutos antes (do pedido de demissão), que ele já tinha feito a mudança." Simonsen embarca para o Rio e no dia seguinte vai à praia de Copacabana. Sua foto de calção de banho é estampada nas capas dos jornais cariocas.

"O Figueiredo viu o Mário em Copacabana tomando banho e o negócio pegando fogo. Ele ficou bravo porque se sentiu traído."

O temor de Simonsen se confirma. Em outubro daquele mesmo ano, Volcker começou a multiplicar os juros nos Estados Unidos, que de 3% chegaram a 20% em 1981. O aperto monetário feito para desinflacionar a economia americana, associado ao segundo choque do petróleo, deu início a uma quebradeira geral no mundo em desenvolvimento, inclusive no Brasil. Coube a Delfim gerir a massa falida.

O Brasil ficou freguês do Fundo Monetário Internacional. "O Brasil foi 16 vezes ao FMI. Acho, não sei, perdi ideia de conta, mas acho que fomos 16 vezes ao Fundo desde Juscelino (JK). Nós aprendemos tudo." JK rompeu com o Fundo depois que o acordo tinha sido assinado."

Outro grande amigo, diz, foi Roberto Campos.


"O Campos sempre foi um sujeito formidável, eu adorava ele. Mas o Costa e Silva tinha uma diferença muito séria com ele. Dizem, eu não sei se é verdade, que, quando o Costa e Silva era ministro do Exército, o Campos, ministro do Planejamento, deu um chá de cadeira nele. Depois Costa e Silva virou presidente."

O Brasil estava numa recessão brutal nessa época, lembra Delfim. Para flexibilizar as políticas fiscal e monetária, porém, era preciso acabar com o curto período de independência do Banco Central, criado em 1964, e demitir o primeiro presidente da instituição, Dênio Nogueira.

"O Dênio era um sujeito muito competente, mas praticava uma política muito restritiva. Ele foi embora e o Rui Leme assumiu o lugar dele", recorda. É o fim do projeto de autonomia concebido para a autoridade monetária pelos ministros Roberto Campos e Otávio Gouvêa de Bulhões, no governo anterior, do general Humberto de Alencar Castelo Branco.

"Não acaba a autonomia. O que acaba é a independência, que era um negócio absurdo", diz Delfim. Campos ficou irritado com a exoneração de Dênio.

"Campos era uma figura inteligente, brilhante e briguenta. Mas o que ele queria, na verdade, era continuar mandando no Banco Central independente."

As histórias vão surgindo aos borbotões de uma mente privilegiada. "O Costa e Silva dizia: 'O Banco Central é independente de quem? É de mim, mas não do Campos, né?'"

Encerrado o governo Figueiredo e o período militar, em março de 1985, Delfim se candidata a deputado federal e em 1986 volta para Brasília. Seu nome, naquela época, era o terror da chamada esquerda brasileira. Ele conta hoje que entrava no elevador da Câmara, sozinho ou com Roberto Campos, que também era deputado, e as pessoas se retiravam, em repúdio.

"O pessoal do PT saía do elevador, achando que aquilo ia me incomodar. No primeiro mandato, estávamos eu e o Campos... Então, a gente se divertia muito."

Sua avaliação do PT é crítica:


"Na verdade, eles tinham uma ideia completamente falsa do que era o Brasil. Queriam fazer do Brasil uma grande Cuba. Coisa estranha é que o Lula nunca teve essa ideia. Lula sempre teve consciência clara de que, sem hierarquia na fábrica, nada funciona."

Delfim conheceu Lula em 1974. O advogado do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Almir Pazzianoto, amigo comum, sugeriu ao ex-ministro que conversasse com o sindicalista para explicar as consequências do primeiro choque do petróleo, de 1973, que acabaria com os anos do "milagre". Numa casa nos Jardins, da mãe do deputado Eduardo Suplicy, dona Filomena, ambos conversaram por uma hora e meia. Começou ali uma empatia que culminaria com o apoio de Delfim à candidatura de Lula à Presidência da República, em 2002. Hoje se visitam com frequência.

Delfim votou em Fernando Collor de Mello nas eleições de 1989, conforme já declarou no passado. O confisco promovido então "não foi um ato de coragem, foi desespero", disse na ocasião. Mas não se arrepende. Collor abriu a economia, reduziu o tamanho do Estado e a dívida pública foi cortada em um terço. "Tudo isso, no final, propiciou o Real."

A concepção do Plano Real, que finalmente conseguiu derrubar a inflação, era brilhante, Delfim reconheceu por diversas vezes. Mas quando o país celebrava a existência de uma moeda que valia mais que o dólar, ele chamava a atenção para a crise de balanço de pagamentos que a sobrevalorização do real iria gerar. Enquanto Fernando Henrique Cardoso tomava posse como presidente da República, Delfim insistia que aquela política terminaria de forma melancólica.

Foram longos os anos ligados à USP e desse tempo ele fala com afeição.

"A universidade foi formada por um grande número de professores judeus que tinham sido expulsos da Itália, da Alemanha." A Faculdade de Economia e Administração (FEA) sempre foi uma escola aberta. "Ela nunca teve uma orientação precisa, digamos, neoclássica, keynesiana, marxista."

No início, os professores não eram nem economistas.

"Era todo mundo autodidata. O sujeito fingia que era economista e dava aula, tá certo?"

Assim como a FEA, Delfim também nunca se vinculou a uma escola de pensamento econômico.

"Nunca me liguei a nenhuma escola. Nunca. Primeiro, que eu realmente pretendia ver econometria, porque eu tinha certo domínio sobre ela. Mas passei a desacreditar desses instrumentos. Quando vejo alguém aplicar uma função de produção para determinar o crescimento do Brasil, acho uma coisa, no mínimo, engraçada."

Dos anos de estudo e prática, ele extraiu uma lição: "Não existe mercado sem Estado e não existe desenvolvimento sem mercado." O mercado, é claro, tem seus problemas e excessos. Mas o Estado também os tem. O melhor, segundo ele, é caminhar numa linha intermediária, e difícil: "Nem considerar a teoria econômica como uma religião, da qual o economista é portador, divulgador e defensor; nem achar que o Estado é onisciente e, portanto, não pode ser nem onipresente nem onipotente".

Delfim estava no segundo ano da faculdade quando adquiriu, numa livraria italiana, a obra do economista e político Constantino Bresciani-Turroni. " Era uma visão extraordinária, muito crítica do keynesianismo que eu nem conhecia direito. Aquilo foi uma revolução."

A verdadeira revolução ocorreria lá pelos anos 1949, 1950, com a chegada às livrarias do livro "Introdução à Análise Economia", de Paul Samuelson.

"O Samuelson fez a maior sacanagem com os economistas. A vida inteira ele promulgou que a economia era uma ciência. Antes de morrer, deixou um recado: 'A economia nunca foi uma ciência e nunca será'. E morreu!"

A memória está bem afiada. Delfim cita nomes de professores e debates de que participou na FEA, naquela época. O professor Paul Hugon, de economia política, ensinava que a moeda era qualquer coisa que servisse como unidade de conta, meio de pagamento e poder liberatório. "O Heraldo Barbuy, professor de matemática, germanófilo, dizia: 'Não é nada disso! Moeda é uma instituição social'".

E prossegue: "Na verdade, era um 'brainstorm'... As aulas dele [Barbuy] ocupavam o sábado de manhã inteiro, saía gente pela janela. Depois eu já tinha feito minha cátedra e fui seu examinador. Até hoje tenho uma saudade enorme dele".

O ex-ministro testemunhou todas as transformações importantes do país: a ditadura, os momentos de crise aguda, as diversas vezes em que o Brasil quebrou, a redemocratização, a hiperinflação, os problemas cambiais e a exacerbação da taxa de juros. A história da sua vida é a história do país em todos esses anos.

"Nunca trabalhei na minha vida. Tudo que fiz foi por diversão, por prazer", declara. " Vou lhe dizer mais: você não escolhe a profissão. A profissão te escolhe. E quando você tem sorte, você nunca trabalha".

Trabalho e diversão se fundiram numa só coisa, que se tornou para ele " uma forma de viver". Considera-se um sujeito de sorte e proclama, num raro momento em que fala sobre si mesmo: "Fui muito feliz, inclusive nos dois casamentos".

Viúvo, Delfim oficializou recentemente a união com Gervásia Diório, mãe de sua filha Fabiana.

Desde que perdeu a reeleição para deputado federal, em 2006, Delfim vai todos os dias ao escritório onde presta consultoria a empresas, escreve para diversos jornais e revistas e faz palestras. Os artigos são produzidos aos domingos, na máquina de escrever cinza Olympia, que tem há 40 anos. Antes de terminar o almoço com o Valor ele comenta que tem que voltar para o escritório e atender dois clientes.

Luís, o maître, se aproxima da mesa e Delfim pede: "Traz aquele carrinho aqui para a gente fazer uma tentação". São as sobremesas.

Após a temporada de dois meses no Incor, Delfim emagreceu 15 quilos, já plenamente repostos. "Perdi uma arroba e ganhei uma arroba", diz, rindo. Faz diariamente uma sessão de alongamento com um fisioterapeuta. "Ele sua pra burro e eu fico sentado."

Ele dá uma conferida nos doces, mas opta pelas frutas que Luís sugere.

"Como é que se chama esse negócio"?, pergunta.

"É pitaya mexicana", diz o maître.

"Seja lá o que Deus quiser, vamos lá, vamos comer!".

Luís traz tâmaras.

"Uma tâmara! Tá bonita, hein?, Acho que não vou perdoar."

"São israelenses", informa o maître.

Delfim diz à repórter: "Põe aí que eles importam essas frutas para eu poder comer todos os dias".

De tudo que viveu até agora, para Delfim foi a Constituinte de 1988 a responsável pela grande mudança que deu início ao Brasil de hoje.

"Com todos os seus problemas e suas utopias, a Constituição de 88, na verdade, foi construindo instituições que estão cada vez mais sólidas. Você tem um Executivo funcionando, tem um Legislativo funcionando e tem um Judiciário funcionando. Tem, ainda, uma coisa que não tem em nenhum outro país emergente, que é um Supremo Tribunal Federal independente, que defende as liberdades individuais e que frequentemente é criticado por tentar fazer justiça."

A Constituição, descreve ele, que foi deputado constituinte, tem três vetores: "Construir uma sociedade republicana em que todos, inclusive o poder incumbente, estejam sujeitos à mesma lei; construir uma sociedade democrática, em que estamos avançando numa velocidade espantosa; e uma sociedade razoavelmente justa".

"O capitalismo é uma corrida feroz, uma competição. Para a competição ser justa, a justiça se faz na saída. Então, todo mundo tem que sair daqui com os dois pés e uma cabeça, tá certo?" Independentemente de o sujeito ter nascido numa suíte presidencial do Hotel Waldorf Astória ou debaixo de uma ponte em Brasília, a carta lhe dá acesso à saúde e à educação. O resultado vai depender da sorte, do DNA e de uma porção de outras coisas. É isso que está implícito na Constituição, diz.

"Aparece um sujeito como o Lula e, intuitivamente, descobre que é isso mesmo que o povo quis por lá na Constituição", completa.

"Quantos votos tem o economista que diz que isso é besteira? Quantos? A mulher dele, provavelmente, não vota nele. Quem decidiu isso tem 50 milhões de votos. É um respeito à forma de organização. O que me parece é isto: Nós estamos nos aperfeiçoando."

- Ministro, o que o diverte hoje?

- Hoje eu me divirto vendo o Brasil melhorar.

- Sente algum incômodo, constrangimento, por ter participado dos governos militares?

- Me causa o incômodo natural que causa a todas as pessoas quando o Estado abusa do seu poder. Uma coisa fundamental é que sempre mantivemos o sistema da economia de mercado.

- Não lhe chegavam notícias dos porões do regime?

- Não! Há um equívoco completo nisso. Tinha uma divisão absolutamente total entre a política e a economia.

- Dizia-se, na época, que o senhor, assim como Simonsen, evitaram algumas prisões. É verdade?

- Quando ficávamos sabendo e podíamos interferir, nós interferíamos, é claro. A gente dava um depoimento a favor do sujeito.

"Não quero me isentar. Não quero me isentar. Eu, pessoalmente, nunca tive nenhum envolvimento em coisa nenhuma. Fiz a minha tarefa de economista. No regime autoritário, as pessoas não compreendem, não existia nenhuma ligação entre o pessoal militar e a administração. Nunca entrou no meu gabinete um oficial fardado. E os que eram militares e estavam no governo, como era o caso do Andreazza, eram civis discriminados pelos outros militares.

- Norberto Bobbio, no livro "De Senectute", fala que, com o passar dos anos, vamos perdendo a capacidade de assimilar o novo. O senhor sente isso?

- Ah, sem dúvida! Sem dúvida. Essa tecnologia moderna, o iPad, o Kindle, não sei o que mais, estou começando a aprender, mas tenho grande dificuldade. Ainda hoje é na Olympia [aquela máquina de escrever que o acompanha há mais de 40 anos], que comando meu pensamento.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

FIDEL LANÇA DOIS VOLUMES DE "GUERRILLERO DEL TIEMPO"



"Nosso dever é lutar até o último minuto"



Arleen Rodríguez Derivet e Rosa Miriam Elizalde - Granma



"BOA TARDE", cumprimentou alegremente Fidel Castro o auditório, e com essas palavras mágicas teve início, num dos salões do Palácio das Convenções, de Havana, o lançamento do livro de memórias do líder da Revolução cubana, Fidel Castro Ruz: Guerrillero del tiempo (Guerrilheiro do tempo), dois volumes das conversas mantidas com a escritora e jornalista Katiuska Blanco.

No mesmo tom risonho, Fidel alertou: "Vão falar-lhe de dois livros que vocês nem tiveram notícia". São, efetivamente, dois volumes que começam com as primeiras recordações da infância do líder e acabam em dezembro de 1958, prévio ao triunfo da Revolução. Somam quase mil páginas nas quais "eu tive algum envolvimento", graceja o comandante, e esse tom distendido animou todo o encontro, que se prolongou quase seis horas e ao menos uma com o comandante em pé, saudando pessoalmente um bom número de participantes, entre eles antigos companheiros de luta do quartel Moncada e do iate Granma, e os familiares dos Cinco cubanos presos nos Estados Unidos.

Fidel envergava um leve casaco esportivo negro sobre uma camisa xadrez, predominantemente de cor azul. A expressão de seu rosto reflete as emoções que lhe inspiram as palavras e anedotas que vão reconstruindo os apresentadores de cada volume desta edição, o ministro da Cultura, Abel Prieto e o presidente da União dos Escritores e Artistas de Cuba Miguel Barnet. As vezes, erguia as sobrancelhas e brilhavam seus olhos, quando Abel, por exemplo, lembrava passagens da infância em Birán, ou ria sem mais preâmbulo, por exemplo, quando Miguel Barnet evocava as palavras de Che Guevara sobre o desembarque do iate Granma: "Foi um naufrágio".

Realmente, a razão pela qual ele estava ali e que repetiu de diversas formas, durante o encontro, responde a uma única pergunta: "Em que mais posso ajudar?". E se houvesse que escolher uma única frase que expresse uma ideia de aonde nos levará este livro — uma jóia da edição e a impressão da casa editora Abril e a tipografia Federico Engels, com fotografias e designs de Ernesto Rancaño, autor da capa — talvez possa servir esta que, no decurso das conversações, ele disse a Katiuska: "Prefiro o velho relógio, os velhos óculos, as velhas botas, e em política, tudo o novo".

Enquanto Katiuska apresenta brevemente as edições e intervêm os apresentadores, em alguns momentos Fidel se mostra tão empolgado como nós, como se de repente, após aquela viagem apertada pelas páginas dos dois livros, enxergasse no seu conjunto, "como em um filme em terceira dimensão" — diria Barnet —, sua própria vida. "É que ressalta todo o valor do que se fez, porém o que mais me interessa é ser útil."

Fidel comenta que lê centenas de despachos de agências todos os dias. Literalmente consome toda a informação que lhe chega. Acompanha com particular detalhe a situação na Venezuela, que em 4 de fevereiro comemorou o 20º aniversário da revolta militar comandada por Hugo Chávez: "Nunca ninguém fez mais pelo povo venezuelano, que o Movimento Bolivariano", comenta.

De muitas coisas falou Fidel com entusiasta disposição ao diálogo, a partir dos comentários e perguntas do auditório: das admiráveis lutas que hoje estão travando os estudantes latino-americanos e do mundo por seus direitos; de sua profunda oposição ao ensino pago; de seu firme credo de que os conhecimentos adquiridos e desenvolvidos pelo nosso país podem multiplicar as produções, os bens e o nível de vida da sociedade, inclusive na agricultura; de que todos estávamos errados ao crer que no socialismo os problemas econômicos estavam resolvidos; dos prêmios Nobel que raramente premiam os que acreditam em um sistema social mais justo; das surpreendentes novidades da ciência e a tecnologia; do arriscado gás extraído do xisto e as fabulosas perspectivas da nanotecnologia; das visitas de líderes mundiais e a impressão que lhe provocaram; das ilhas Malvinas, "esse pedaço de terra arrebatado à Argentina", onde agora os britânicos pretendem extrair petróleo e, naturalmente, das terríveis ameaças que pairam sobre a Síria e o Irã, enquanto os Estados Unidos e Europa pretendem convencer a Rússia com a ridícula ideia de que o escudo anti-mísseis é para proteger esse país das ameaças do Irã e da Coreia do Norte.

Para ele, se torna imprescindível estar a par dos acontecimentos, e reconhecer que "já não há espaço só para os interesses nacionais, se não estão incluídos nos interesses mundiais... Nosso dever é lutarmos até o último minuto, por nosso país, por nosso planeta e pela humanidade".

FALANDO DOS CINCO E COM OS CINCO


Em duas ocasiões, Fidel falou de Juan Cristóbal, de Romain Rolland, como uma de suas leituras favoritas. A primeira foi ao descobrir na fila atrás de seus companheiros do ataque ao quartel Moncada, as mães dos Cinco. Aquela novela foi uma de suas leituras na prisão. Foi uma das que sobreviveu à censura do chefe do cárcere, um "indivíduo odioso, imbécil, ladrão... "a tal ponto que lhe proibiu livros como Stalin, de Trotsky e em troca deixou passar O Capital, de Karl Marx.

"Aqui estamos vendo os familiares dos Cinco. É admirável o que conseguiram resistir esses homens", exclamou com admiração. E embora dissesse que não havia comparação entre os quase dois anos em que ele esteve preso com os 13 anos que levam confinados Gerardo, Ramón, Fernando, Antonio e inclusive René — ao que não lhe permitem voltar a Cuba — percebeu-se que Fidel está particularmente interessado na situação atual deles.

"Agora mesmo estava lendo o que escreveu Antonio, acerca da transferência de prisão. "Como é que ele está?", perguntou com marcante interesse, pois ele, também como preso político sofreu atropelos e até ameaças de morte.

Mirta, a mãe de Tony, lhe explicou que era uma mudança à que tinha direito e que ele havia pedido, após ter-lhe sido reduzida a condenação. Ele esteve 13 anos na prisão de máxima segurança de Florence, Colorado — tão difícil que é chamada de "Alcatraz das Rochosas"—, o que obrigava os familiares a pegarem três aviões, para poder visitá-lo. Agora está em Marianna, Flórida, a mesma onde esteve René até sua saída, em 7 de outubro passado.

"Foi muito favorável, devido à mudança do clima e porque agora só tenho que pegar um avião e depois viajar por auto-estrada", explicou a mãe do poeta prisioneiro, uma mulher admirável que neste ano completa 80 de idade e já estava se ressentindo das viagens esgotantes para visitar o filho. Quanto a ele, comentou que tem muito bom ânimo e que pediu transmitir a todos o agradecimento pelo apoio à luta pela causa dos Cinco, que entrou em uma fase crucial e decisiva.

"Tal como seus companheiros, se mantém com a mesma fidelidade, resistência, bom ânimo e o desejo de que, finalmente, chegue a vitória", disse Mirta.

A VISÃO ÍNTIMA DA HISTÓRIA

A escritora Graziella Pogolotti, presidenta da Fundação Alejo Carpentier, iniciou a rodada de perguntas. Um dos problemas da aproximação à História —assim em maiúsculos — é que se acompanha a sequência dos grandes acontecimentos, mas quase nunca os meandros, aqueles detalhes íntimos, a memória, essas coisas que não só tocam a mente, mas sim o coração. Propôs ao líder da Revolução que continuasse escrevendo, que continuasse esta saga testemunhal e que contasse mais de sua experiência como lutador e o intercâmbio com grandes personalidades do mundo.

"Tenho que aproveitar agora, porque a memória se gasta". Mais uma vez, veio à tona o magnífico humor dessa tarde, e prometeu: "Estou disposto a fazer tudo o possível por transmitir o que recordo bem... Estive expressando todas as ideias que tinha e os sentimentos pelos que atravessei". Mais em diante acrescentou: "Adquiro consciência da importância de relatar tudo isso para transmiti-lo, de modo que seja útil".

Chamou a atenção sobre a enorme revolução que se produziu no pensamento, em uma época marcada, aliás, por avanços científicos inusitados. "Internet é um instrumento revolucionário que permite receber e transmitir ideias, nos dois sentidos, algo que devemos saber usar". E comentou acerca do enorme potencial que o país tem para participar nestes desenvolvimentos. Por exemplo, só a Universidade das Ciências Informáticas, entre estudantes e docentes, possui 14 mil pessoas em suas salas de aula. "Estamos aproveitando esses valores e recursos para transmitir ideias?", perguntou.

Em um diálogo com a presidente da Federação dos Estudantes do Ensino Médio, Mirthia Brossard, Fidel disse que "devemos apoiar as ideias da jovem chilena — Camila Vallejo — no sentido de lutar para que a educação seja igual para todos. Que não seja só uma educação geral e gratuita, mas sim preocupar-nos por aquilo que se ensina". E acrescentou: "A educação é a luta contra o instinto. Todos os instintos conduzem ao egoísmo, mas só a consciência nos pode levar à justiça. Esta não é só uma fórmula prática, mas é, teoricamente, a única aceitável".

O pintor Alexis Leyva Machado (Kcho) comentou-lhe, já quase no fechamento do intercâmbio, que este livro expressa a forma em que Fidel se converteu em um líder de categoria mundial, não pela força, mas sim por sua inteligência. Quando o artista pediu a Fidel que expressasse uma recomendação para lutar, em meio deste mundo louco que nos coube, o comandante respondeu: "Você mesmo disse, faz falta, mais do que um ato de valentia, um ato de inteligência".

O líder da Revolução lamentou que se esgotasse o tempo, mas o encontro encerrou, tal e como começou, com risos: "¡Que pena, isto vai acabar! Senti-me muito feliz, mas eu sou um colaborador dos médicos (os que o atendem). E saibam que o faço, não como um ato de valentia, mas sim de inteligência".



CONVERSAÇÕES À MARGEM

O valor de Sara

DIANA Balboa, companheira de Sara González, cujas cinzas foram esparcidas, na manhã do sábado, 4 de fevereiro, nas águas da baía de Havana, subiu ao estrado, a pedido de Fidel, quem a abraçou e elogiou sua consagração ao cuidado da famosa trovadora cubana, durante os intensos meses que durou sua batalha contra o câncer.

"Sei que você foi muito valente", disse Fidel, ao que ela respondeu: "Valente foi ela, comandante. Ela foi muito valente e enquanto teve lucidez, se manteve preocupada por seu trabalho, por sua condição de cubana e patriota e partiu tranquila, não teve um fim trágico."

Trocando olhares, Diana quis transmitir ao líder da Revolução que Sara ficou muito feliz quando soube, por parte do dr. Cepero, diretor do Centro de Pesquisas Médico-Cirúrgicas (Cimeq) e o professor Elliot, médico de cabeceira, a permanente preocupação pessoal de Fidel por ela. "Eu só queria saber que não lhe faltasse nada", foi a resposta de Fidel.

O resto, como todo o essencial, não era visível. Segundo Diana, "a conversa se centrou mais na ternura do que nas palavras. Eu senti essa ternura e uma emoção muito profunda em seu olhar. Todo mundo sabe o quanto se queriam mutuamente Fidel e Sara".

Com Antônio ou com René?

JÁ Fidel e os convidados estavam saindo, quando se recebeu uma ligação de René ao celular de sua esposa Olga, e esta entregou o telefone ao líder da Revolução. Inicialmente, Fidel achou que era Antônio e depois de enviar-lhe um fortíssimo abraço, lhe perguntou por suas leituras e "como vai a poesia". Com certeza, seu interlocutor lhe explicou que não era o poeta porque Fidel disse logo: "Ah, caramba, foi uma confusão! Pensamos muito em vocês e particularmente em você, vai receber dois livros que vai ler em meio dia", lhe comentou, entre outras coisas. Junto a Fidel, todos tentavam escutar a voz do outro lado, mas só conseguimos escutar as últimas palavras de René: "Se cuida, comandante, e nos vemos lá".

"Um fortíssimo abraço", reiterou ele. Depois, indagaria com Olga se alguém o acompanha nesta obrigada retenção no território estadunidense. Ela comentou que o visitam os familiares que recebem visto, mas que em sua "liberdade vigiada", ele tem muitas restrições, a pior de todas, a negativa a conceder-lhe o visto a ela para que possa acompanhá-lo.

"Não lhe deram visto nem uma única vez?", quis saber Fidel. "Visto não, comandante. Sempre o negaram, desde que me deportaram no ano 2000. Adriana tampouco recebeu visto para visitar Gerardo, desde que está preso".

Ao despedi-las, Fidel insistiu em sua convicção de que na luta pelo retorno dos Cinco "vamos ter sucesso".