sexta-feira, 20 de abril de 2012

AS HIENAS E OS CORRUPTOS


Por Jacob Fortes via aparicio.secundus




Entre os animais irracionais existem os inofensivos, os peçonhentos, os transmissores de doenças, os asquerosos, e assim por diante. Dentre os últimos, chama atenção, em particular, a desaprumada hiena. Primeiro, pela tendência inata de alimentar-se de carcaças de animais que encontra ou rapina de outros carnívoros; segundo, pela fealdade, de causar repugnância aos olhos; e, terceiro, pela sua fetidez inigualável.

Diferentemente das hienas, há, entre os humanos, aqueles que, mesmo em aparições raras e fugidias, se fazem notar não apenas pelo perfume que agradavelmente vão recendendo, mas, sobretudo, pelo trajar distinto que os embelezam. Por onde passam lhes são prestados acatamentos e reverências já que suas figuras comedidas e afidalgadas faz parecer tratar-se de pessoas de indiscutível honorabilidade. A plácida postura de cordeiro, que simulam, lhes reforça a crença de serem pessoas de quem não se pode suspeitar. Aludo aos corruptos.

Enquanto as hienas, de hábitos noturnos, se comunicam naturalmente fazendo ressoar, na imensidão da noite, seus ganidos ásperos de efeito pavoroso, os corruptos, de hábitos diurnos, são silenciosamente discretos: não se deixam assobiar nem cantarolar, porém, à boca miúda, são excelentes comunicólogos; se fazem entender por mensagens codificadas. Quando não, optam por balbuciar locuções breves, por vezes monossilábicas, uma espécie de confusa linguagem de papagaio: ininteligível para muitos, mas facilmente entendida por seus acumpliciados. Ao serem flagrados em gravações telefônicas não mostram as suas caras, já que são invisíveis, mas por meio de notas injuriadas, vindas do além, denegam tudo e, principalmente, desqualificam quem as gravou. Por essas notas descobre-se que eles têm verdadeira predileção por certos advérbios, sobretudo o de negação: não conheço, nunca vi, jamais falei, tampouco ouvi.

As hienas, no papel de lixeiras, ao consumirem cadáveres, evitam a disseminação de doenças em favor do equilíbrio ecológico. Os corruptos, com sua insaciável gula de esponja, que ultrapassa o exclamar dos seus estômagos e suas ambições inescrupulosas, drenam os recursos públicos mediante o emprego de manobras fraudulentas. Nesse ofício de gatunagem causam o retesamento das rédeas da prosperidade nacional; alicerçam desabrigos; adoentam áreas consideradas vitais para as camadas mais necessitadas da população: hospitais, escolas, infância, velhice, segurança pública; alargam os caminhos dos presídios, defuntam feições; produzem carcaças fazendo crescer o corpo de voluntários, do submundo, que tem procuração para aplicar a pena máxima. No “solo gentil” não existem as poderosas hienas, das planícies africanas, devoradoras de carcaças, mas no “formoso céu”, de prontidão, os urubus monitoram os morrediços. Além de fazerem a recolha do lixo, de brinde, emprestam sua figura para que os rubro-negros a tornem a mascote flamenguista.

Tais quais os passarinhos, as hienas também são animais gregários. Os corruptos, no entanto, preferem viver solitariamente desacompanhados; despercebidos. Reforgem quando sob olhares fixos; repudiam interpelações. Caricaturados de Lombardi, esses escroques dos impostos do contribuinte, ainda que invisos aos olhos de todos, podem ser vistos, ocultamente, por alguns poucos aparceirados de gabinetes que, no silêncio das desoras, os ciceroneiam pelos caminhos atalhados e obscurecidos que levam aos recursos públicos; tao sedutores quanto evidentemente malcuidados. Recursos que exalam o suor dos trabalhadores brasileiros, e, também, o sangue tupiniquim que tanto atrai os vampiros dípodes, os quais, a exemplo dos morcegos, se esquivam da luz do sol. Com tamanha vocação corruptível, de duas uma, ou o país não é nosso, se fosse já teríamos extirpado essa chaga, ou nós não lhe pertencemos; vestimos o que nos dão.

Ao contrário da postura discretamente recatada que singulariza essa espécie de malfeitores, há uma variedade que prefere viver de de maneira ruidosa. São os caraduras, popularmente conhecidos por caras-de-pau, que recorrem ao populismo e outros expedientes sagazes para, à cretinice e falsa fé, insinuar que são legítimos emissários da honradez e da ética. Invariavelmente são encontrados no meio político, mormente no legislativo municipal, estadual e federal. Escudados pela legitimidade de mandato eletivo, e devidamente maquiados pelos efeitos acobertadores do óleo de peroba, se proclamam, em tom de austeridade, legítimos guardiões da retidão. Apesar dos seus discursos eloquentes, em favor da descência, alguns de causar arrebatamentos de fazer inveja às imponentes cachoeiras, proferidos do alto das tribunas, não passam, na substância, de embusteiros; desgraçadamente sufragados pelos eleitores. Para esses promesseiros fementidos, o provérbio secular adverte: “o gato rude que cuida, disto usa”

Contudo, esperançar é dávida natural da vida. Oxalá possa o astucioso progresso tecnológico, inventar máquinas capazes de identificar e caçar almas, visagens, sombras, fantasmas e silhuetas de contornos não identificado que, tencionando surripiar, vagueiam pela penumbra dos erários.

E enquanto as máquinas caçadoras não chegam, esses seres inabordáveis, agenciadores das desditas do povo, vão esvaziando os cofres públicos. Afeitos à desgraça produzida pela voluptuosiade do absurdo, os contribuintes, afrontados, exauridos e vergados por pesados fardos de impostos, se encarregarão — até que o jumento se torne profeta — de reabastecê-los, sob o amargo ressaibo de que os salteadores permanecerão impunes, inclusive porque a punibilidade não alcança seres espectrais. No entanto, já que o brasileiro tem forte apego a crendices, superstições, mandingarias e benzeduras, que tal o país, unido, valer-se desses expedientes para ver se afugenta esses fantasmas ratoneiros?


Jacob Fortes

Jacob Fortes de Carvalho Carvalho [mailto:jacobfortes@yahoo.com.br]

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Domingos Pellegrini - Histórias - Colunistas - Gazeta do Povo

O professor de História, no seu primeiro dia de aula, entra e os alunos nem percebem, conversando, falando ou jogando no celular. Ele escreve na velha lousa um imenso H, e depois vai desenhando cabeças com bigodes e barbas, enxada, foice. A turma foi prestando atenção, trocando risinhos, e agora espera curiosa. Finalmente ele fala:

– Não vamos estudar aquela História com H, só com heróis e grandes eventos! Vamos estudar a partir da nossa história, daonde e como viemos. Por exemplo, como é seu sobrenome?

– Oliveira.

– Pois é, muitos Oliveiras têm esse nome porque eram imigrantes europeus, fugidos de perseguições religiosas, então adotavam nomes de árvores ou plantas, Oliveira, Pereira, Trigueiro e tantos outros. E o seu sobrenome?

– Santos.

– Foi o nome adotado por muitos ex-escravos ou filhos mestiços de fazendeiros com escravas. Você é, como diz o IBGE, pardo, o que não é vergonha nem demérito algum, ao contrário, a maioria do povo brasileiro é pardo. E o seu sobrenome?

– Vicentini.

– Origem italiana. Os italianos, como os espanhóis, alemães, japoneses, vieram para cá para bater enxada, trabalhar nos cafezais quando os escravos foram libertados.

O engraçadinho da turma levanta o braço:

– Meu sobrenome é Silva, professor. Tem mais Silva na lista telefônica que formiga em formigueiro. Daonde eu vim?

– Da selva. Silva é selva, em latim. Foi o nome dado pelos romanos antigos aos que vinham das florestas para morar na cidade, eram os “da selva”. Se a gente pensar que a maioria das pessoas morava no campo há meio século, e depois se mudou em massa para as cidades, a origem do nome até se justifica.

A turma espera em silêncio: aonde ele quer chegar?

– Proponho o seguinte. Vocês conversem com seus pais, avós, tios, para saber dos antepassados. Daonde vieram, por que, trabalharam e viveram onde e como. Cada um contará então a história de sua família, e daí vamos situar essa história familiar na história social. Vamos falar da cafeicultura, por exemplo, depois que alguém falar que seu avô trabalhou com café.

Uma mocinha levanta a mão:

– Não só meu avô, professor, minha avó conta que também trabalhava. Levantava às cinco, fazia café, dava de mamar ao nenê, porque ela diz que sempre tinha um nenê no ombro, outro na barriga e uma criança na barra da saia. Depois de fazer o café e tratar das galinhas, recolher os ovos, tirar leite das vacas e cuidar da horta, ela ia levar marmita pro meu avô e os filhos maiores no cafezal, e ficava lá também batendo enxada até o meio da tarde, quando voltava pra preparar e janta e...

– Bem, só com isso que você contou podemos estudar a cafeicultura e o feminismo, comparando as famílias daquele tempo e de hoje, tantas mudanças. Cada um de vocês, com sua história, vai acender o fogo do conhecimento em cada aula. Eu só vou botar lenha, dar as informações, vocês vão dar vida à História, que aí, sim, vai merecer H maiúsculo! Combinado?

Os alunos aplaudem, entusiasmados, comentam: nossa, massa, uau, professor maneiro!... Saem, e depois ele, saindo, dá com o diretor nervoso:

– Eu ouvi sua aula, professor, aqui ao lado da porta, como faço com todo novato! O senhor tire essas ideias da cabeça, viu? Vai ensinar conforme o programa, começando pelo descobrimento, as três caravelas, a calmaria etc. Entendido? Ora, onde já se viu, História viva... Só por cima do meu cadáver!

O professor novato vai pelo corredor, sentindo-se morrer por dentro. Na sala dos professores, nas paredes estão Tiradentes e o crucifixo de Jesus, dois mártires. Ele chora, perguntam por que, apenas consegue dizer “não é nada, é uma longa História”.



terça-feira, 17 de abril de 2012

A crise global revigorou o marxismo, diz sociólogo

Valor 17/09

Desde que o prefixo "pós" se antepôs a todos as categorias do pensamento contemporâneo, ainda nos anos 1950, houve uma expansão intensa do seu uso. Do pós-moderno nas artes plásticas à pós-modernidade como generalização de todos os pensamentos que pretenderam, ao longo do século XX, superar os conceitos modernos, foi um salto de poucos anos e muitas denominações. Pós-estruturalista, pós-humano, pós-gênero, pós-feminista, pós-capitalista - era como se o "pós" pudesse revigorar de conteúdo conceitos que pareciam estar ultrapassados em suas principais características. Uma vez revistos e atualizados pela mágica do "pós", esses conceitos retomam seu lugar de valor para o pensamento.

Embora reconheça certa inflação no uso do "pós", o sueco Göran Therborn, 70 anos, professor emérito de sociologia da Universidade de Cambridge, quis se valer dele como estratégia para apontar o frescor do pensamento marxista, tão em voga no período pós-crise americana de 2008. Na semana passada, ele percorreu o Brasil, de Porto Alegre a Belém, passando por São Paulo, para lançar "Do Marxismo ao Pós-marxismo?" (Boitempo Editorial), seu segundo livro traduzido no país. Admirador das ciências sociais no Brasil, Therborn é um entusiasta dos movimentos sociais da América do Sul, que embalam seu ideal de que "outro mundo é possível". "Um cientista social progressista hoje tem poucas razões para chorar", diz ele na entrevista a seguir:



Valor: A globalização, o neoliberalismo e todas essas transformações que se generalizam no termo pós-modernidade podem ser pensados ainda a partir de Marx? O que há de atual nesse pensador alemão do século XIX que possa ser útil aos grandes dilemas do século XXI?

Göran Therborn: Primeiro, é preciso fazer algumas classificações. A globalização é o voo da modernidade, e o neoliberalismo é uma variante da modernidade de direita. Em outras palavras, temos aqui mutações do modernismo e da modernidade, e não a pós-modernidade. Sobre a globalização, estamos no mesmo terreno que Marx, o primeiro grande teórico social da modernidade contemporânea, como foi Baudelaire no que diz respeito à pintura e à poesia. O "Manifesto Comunista" foi a primeira inovação mais eloquente da globalização. Por isso, Marx foi recentemente ressuscitado, por exemplo, por Thomas Friedmann, do "New York Times". O economista Nouriel Roubini, que previu a crise de 2008, reconheceu a importância de Marx como o principal analista da dialética e das contradições do capitalismo. O capitalismo é autodestrutivo - e digo isso sem qualquer tom apocalíptico -, e a expansão dos baixos salários é insustentável, como Taiwan e Hong Kong estão aprendendo agora.

Valor: "Do Marxismo ao Pós-marxismo?" é um título estranho para um livro. Primeiro, porque faz uma interrogação que fica sem resposta. Depois, porque introduz no vocabulário da pós-modernidade o pós-marxismo como um conceito. Trata-se, afinal, de uma superação, de um avanço ou de um progresso do marxismo?

Therborn: O ponto de interrogação do título se refere a um futuro em aberto, ainda incerto. Comparado com Confúcio, Platão, Aristóteles, Maquiavel, John Locke, Adam Smith, ou com Dante, Cervantes e Shakespeare, Marx ainda é jovem. Ele será relido, reinterpretado e reinvocado ainda muitas vezes no futuro. O que é duvidoso é se haverá uma identidade coletiva para "os marxistas". Daí o ponto de interrogação. Para Marx, isso não significava muito. Como ele afirmou, numa provocação: "Eu não sou marxista".

Valor: Pós-marxismo, pós-capitalismo, pós-feminismo, pós-modernismo, pós-humanismo. O prefixo pós virou uma panaceia?

Therborn: Você está certa, houve uma inflação muito grande deste prefixo "pós". No entanto, o impulso intelectual pós-modernista era extremamente desafiador e importante, com suas investigações sobre as suposições mais básicas do nosso tempo - de "progresso", "desenvolvimento" etc. São questionamentos que têm sido muito frutíferos para fins políticos, bem como para um autoquestionamento intelectual.

Valor: O senhor cita a Universidade de São Paulo (USP) como referência para o não conformismo ao pensamento dominante e como suporte ao pensamento marxista de esquerda. O senhor está atualizado sobre a produção acadêmica brasileira neste sentido? Em que um país periférico como o Brasil pode contribuir para o desenvolvimento de teorias alternativas?

Therborn: Tenho um grande respeito pelas ciências sociais brasileiras, que conheço um pouco, não só da USP, mas também de outras universidades e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Eu acredito que a academia e a inteligência brasileiras certamente têm contribuições muito importantes intelectuais para o mundo.

Valor: "Sexo e Poder", seu primeiro livro traduzido no Brasil, discute as mudanças na instituição familiar em todo o mundo no século XX. Em que medida a mudança na família também alterou o modo de produção para o qual a crítica de Marx se dirigia?

Therborn: A família e os diferentes sistemas familiares no mundo inteiro continuam a ser importantes. Como mostrei em meu último livro, "The World" (Cambridge, 2011), menos da metade da força de trabalho mundial está empregada numa relação direta capital/trabalho. Um terço da mão de obra é formado por trabalhadores por conta própria, um sexto são membros da família patriarcal ajudando nas atividades econômicas, e de 5% a 10% estão em empregos públicos.

Valor: Ou seja, o fim do emprego industrial, que já não concentra mais a maioria da classe trabalhadora. É a isso que o senhor atribui o que chama de "fracassos e derrotas da esquerda"?

Therborn: Sim, a teoria de Marx se concentra nos circuitos do capital, inclusive nos mercados transnacionais. Mas é verdade, um desenvolvimento não ideológico das ideias de Marx tende a destacar que a virada do capitalismo avançado em direção à desindustrialização significou um enfraquecimento estrutural do trabalho e, consequentemente, da esquerda.

Valor: O senhor se refere ao "encontro malsucedido entre os manifestantes do mítico maio de 1968 e os movimentos trabalhistas". O que deu errado neste encontro?

Therborn: Basicamente, foi um não-encontro entre a utopia radical do movimento estudantil, do pragmatismo, por mais de esquerda que fosse, e do movimento sindical. Na melhor das circunstâncias, houve um longo período de contato entre o pragmatismo trabalhista de Lula, que se transformou, sem renegá-lo, no radicalismo de Dilma.

Valor: O senhor diz estar interessado nos "movimentos críticos ao modernismo que não são, contudo, defesas de direita do privilégio e do poder tradicionais". Que movimentos são estes? O tom geral do seu livro é de apelo a uma renovação no pensamento da esquerda. O senhor é um otimista?

Therborn: Os movimentos de direitos humanos, os movimentos feministas, movimentos das crianças, movimentos homossexuais, movimentos urbanos, movimentos de direitos de sustentabilidade. Há certamente sinais de despertar crítico. A tendência para a desigualdade intranacional e extrema polarização econômica levou a deslegitimação para uma dimensão impressionante, inclusive na última reunião de Davos. A "Primavera Árabe" colocou o capitalismo oligárquico em xeque, mesmo que se abram fluxos internacionais de comércio e capital. A América do Sul, exceto Chile e Colômbia, é um laboratório de transformação social. E a direita no Chile está sob forte pressão popular, dos movimentos estudantis e suas repercussões sociais. Um cientista social progressista hoje tem poucas razões para chorar, mesmo que o mundo permaneça sendo terrivelmente desigual. Outro mundo continua sendo possível.



"Do Marxismo ao Pós-marxismo?"

Göran Therborn. Boitempo Editorial 160 págs. R$ 39,00

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Um liberal "ma non troppo"





Valor 13/04

Para muita gente, ele dificilmente deixará de ser o arrogante presidente do Banco Central que sustentou a política de real sobrevalorizado até que a crise da Rússia sacudiu a economia brasileira. Um abalo que o derrubou do BC e, meses depois, obrigou o governo a liberar de vez a moeda brasileira para flutuar ao sabor do mercado. Hoje sócio da Rio Bravo Investimentos, Gustavo Franco não mostra nenhuma arrogância. É gentil, paciente, sem deixar de ser apaixonado pelo que faz, seja na economia ou na literatura.
Franco, que completou 56 anos nesta semana, chega ao Antiquarius - afamado restaurante português próximo à praia, no Leblon -, poucos minutos após o horário marcado, acata a sugestão de subir ao mezanino, onde há uma mesa reservada para a conversa e, no caminho, explica por que reduziu as intervenções no debate público e abandonou as colunas regulares que tinha na imprensa. "Não dá tempo!" Queria pesquisar e escrever em projetos de fôlego, e a vida de colunista o impedia. "Quando escrevia na 'Folha' comecei a pensar que estava virando jornalista."

- Parece pejorativo, esse comentário.

- Não, de jeito nenhum, mas o jornalismo requer uma postura diante dos eventos mais, mais...

- Mais superficial.

- Você está dizendo [concorda, rindo]. Os artigos davam muita vontade de escrever mais profundamente sobre os temas, e não conseguia. Precisava comentar, na semana, um assunto que, com o tempo, iria perder importância, mas naquele momento era o que se queria ouvir.

Franco mora, hoje, no apartamento de 600 metros quadrados que herdou do pai, no elegante bairro de São Conrado. Herdou também uma confortável situação financeira, um patrimônio de imóveis que o dispensaria de trabalhar, algo que não passa pela cabeça do bem-sucedido consultor financeiro, até hoje professor na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), de onde saiu para trabalhar no Ministério da Fazenda sob Fernando Henrique Cardoso. No curso (que não dará neste semestre), ele ensina aos alunos a necessária relação entre direito e economia, baseado em sua experiência nos embates com os assessores jurídicos durante o Plano Real.

Apesar das queixas sobre falta de tempo, tornou-se ensaísta bem-sucedido no território insólito que une artes e dinheiro. No livro "Cartas a um Jovem Economista", em que traduz sua experiência, em tom confessional, diz, irônico, que economistas, como outros profissionais, erram, o que só significa que é preciso trabalhar duro: "Nessa profissão em que não há base científica para o ofício de profeta, mas há enorme demanda por profecia".

O economista, para Gustavo Franco, tem algo de pregador ou de militante, e ele acha que as "circunstâncias" o fizeram cumprir esse papel. "Acho que foi Paul Krugman quem disse: 'no domínio das políticas públicas, fazer significa empreender, convencer as pessoas'."

Sem gravata, de camisa social e terno, ele parece pouco à vontade, pela maneira como esfrega as mãos. O garçom interrompe a conversa para apresentar uma espécie de campainha ("se precisarem de alguma coisa").

O economista diz que, na tarefa de empreender a política publica, às vezes existe um "terreno conflagrado", que pede confronto, "não desleal, mas contundente". É um papel que cumpriu no governo. "Gosto desse papel, não tenho nenhum problema com isso."

O folclore em torno dele inclui uma reunião em São Paulo, na qual, após ouvir queixas contra a abertura econômica e o câmbio de um empresário do setor calçadista, teria avisado: "Seu setor vai acabar". Mais tarde, Franco negou o incidente, que, hoje, diz ter sido possível. "Falei coisas do gênero, sim, em situações parecidas, inclusive com gente amiga."

Virou piada familiar: um parente, empresário do setor têxtil, foi convidado para um fondue na casa do economista e levou queijo, mesmo prevenido contra a iniciativa. "Detesto queijo. Na época, comíamos na minha mesa de trabalho, na biblioteca. A ideia do cheiro de queijo em meus livros era impensável." Não serviram o fondue levado pelo amigo, que, durante a conversa, lhe perguntou o que pensava do futuro da indústria têxtil. "Disse umas verdades; todas aconteceram: ele foi arrasado pelos coreanos", lembra. E na família ficou a lenda: "Não mexam com o Gustavo nisso, de queijo, que ele lança uma maldição".

Com manteiga não tem inimizade; mas queijo, ou leite, nem pensar. Uma amiga lhe dizia que essa aversão pedia tratamento com psicanalista. Franco fez análise, e, quando teve alta, constatou, no bandejão da PUC, que Freud era ineficaz contra fobia a certos laticínios. Em economia, também, o liberalismo de Franco pouco tem de freudiano, ainda que ele seja filho de um fundador do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), um dos mais próximos auxiliares de Getúlio Vargas, Guilherme Arinos Lima Verde de Barroso Franco, filho de professora do interior do Amazonas. Concursado no Banco do Brasil, encantou Getúlio, que chegou a acompanhar durante o retiro na fazenda de São Borja. O nascimento de Gustavo está ligado, de certa forma, ao suicídio do líder populista.

Guilherme Arinos de Barroso Franco estava no palácio quando Getúlio se suicidou. Por influência do líder, havia sido poderoso chefe de gabinete em duas gestões do Ministério da Fazenda e só não foi designado interventor no Amazonas porque a noiva, Maria Isabel, não aceitou. Ela até entendia a dedicação de Guilherme a Getúlio, que a obrigou a estender o noivado por quase uma década. Mas, com o suicídio do presidente, deu um ultimato ao noivo: casaram-se e, 20 meses depois, vinha ao mundo Gustavo Henrique de Barroso Franco.

Com a morte de Getúlio, o pai de Gustavo Franco acompanhou a implantação da indústria automobilística, na direção do grupo Monteiro Aranha, que traria a Volkswagen ao Brasil. Já na faculdade, Gustavo fez estágio na corretora Garantia, hoje banco, onde o pai foi sócio. Decidiu estudar economia por influência paterna, mas o assunto não costumava ser discutido em casa. O pai, discreto, nem lhe contava dos debates homéricos que teve, no BNDES, com o amigo Roberto Campos, cofundador do banco. Divergências operacionais, ditadas pelo pragmatismo de Guilherme, garante o filho. "Nenhum dos dois era desenvolvimentista", assegura ele, que jura ser liberal "ma non troppo". "No contexto americano, de Estado mínimo, sou um heterodoxo."

"No Brasil, as situações e a experiência de política econômica são heterodoxas", diz. "Temos de navegar em um mundo de intervenção do Estado, onde o Estado é pesado." A PUC do Rio, "esse antro de neoliberais" onde estudou e até hoje dá aulas, é dissidência da Fundação Getúlio Vargas, essa sim, escola que seguiu por mais tempo o ideário ultraliberal da Escola de Chicago, que dominou países como o Chile nos anos 70.

Na PUC dos anos 70, Franco, estagiário, ajudou Edmar Bacha a escrever um bem-sucedido livro de introdução à economia, baseado no marxista polonês Michael Kalecki- o "Keynes de esquerda", para alguns, por ter antecipado ideias de John Maynard Keynes, santo padroeiro de muitos desenvolvimentistas. "O Edmar diz que eu é quem era o kaleckiano. Outro dia lemos que na Argentina queriam obrigar todo mundo a estudar Kalecki e pensamos: 'Ora, vamos reeditar o livro'", brinca.

Após 40 minutos de conversa, pela primeira vez é acionada a campainha de chamar garçom. "Pode trazer aquelas coisinhas", pede Franco, íntimo da casa e do couvert, com delicados croquetes, risoles e outros acepipes. Indiferente ao ruído ambiente, Franco conta que, como professor na PUC, até adotou o manual kaleckiano escrito com Bacha.

"Seria ridículo ensinar economia pegando manual americano, escrito para um estudante que nem sabia o que era inflação, do tamanho que tínhamos, na época", defende-se. "Hoje, à medida que o Brasil fica mais normal, a integração com os livros-texto de outras partes do mundo fica mais tranquila."

Mas a economia brasileira não é excepcional? "É um velho tema", responde. E revela que, depois de ter produzido livros sobre a economia nas obras de Fernando Pessoa, Machado de Assis, Shakespeare e Goethe, se dedica a Kafka. Não o tcheco, Franz, mas um primo distante, o brasileiro Alexandre Kafka, ex-diretor do Brasil no FMI.

O Kafka brasileiro elaborou, nos anos 50, dez leis sobre a economia brasileira, uma delas, a "lei do comportamento discrepante", quando ainda era o Banco do Brasil que fazia política monetária: "Independentemente dos homens e suas intenções, sempre que o ministro da Fazenda se entrega à austeridade financeira, o Banco do Brasil escancara os cofres e vice-versa". Franco pretende atualizar e ampliar essas leis em um novo livro. "Não são leis da teoria, mas da sabedoria da política econômica, perfeitamente explicáveis dentro da teoria convencional."

"Simpatizo com a ideia de que o Brasil é meio diferente, mas morro de medo das implicações desse tipo de postura, principalmente no ensino." Admitir a excepcionalidade brasileira pode levar ao desprezo pelo estudo da teoria, na crença de que homens práticos, treinados na escola da vida, podem fazer coisas que dão certo, no fim, argumenta o filho de Guilherme Arinos, sem se dar conta da implicação edipiana do raciocínio.

Enquanto o garçom serve água, Franco conta sua experiência de edição, iniciada com a ideia, na Rio Bravo, de distribuir um livro como brinde de fim de ano, em lugar das óbvias agendas. Escolheram um discurso marcante de Rui Barbosa, feito antes do golpe de Floriano Peixoto na República recém-instalada. Franco fez a longa introdução ao texto, como historiador que é, autor de um ensaio sobre essa época que, na década de 80, lhe rendeu o prestigiado prêmio BNDES (Ph.D. por Harvard, sua tese lhe deu outro prêmio, o da Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia).

O êxito do livro e a decisão de repetir a dose no fim do ano seguinte levariam o economista a se lembrar de uma resenha, "Pessoa Neoliberal", do jornalista Carlos Franco (nenhum parentesco), sobre textos de Fernando Pessoa dedicados a temas econômicos. Gustavo Franco teve a ideia de organizar os textos do poeta em verbetes atuais. Embora não existissem os termos, Pessoa escreveu sobre globalização, privatizações e até e-mails. "Ele tem um texto sobre correspondência comercial, encantador, que é um guia para a escrita de e-mails", diz Franco. Ele publicou, a seguir, um livro com crônicas econômicas de Machado de Assis, por sugestão de Mário Rosso, especialista no escritor brasileiro. Reuniu, pela primeira vez, textos sobre um personagem machadiano nada mencionado, o "rentista", aplicador que, do Império à República, não se importa com a situação da empresa em que investe, desde que lhe garantam os dividendos.

Chegam os pratos e as lulas grelhadas pedidas por Franco são, claramente, a melhor pedida. Uma demonstração prática de como é injusta a assimetria de informações do mercado: o cordeiro pedido pelo repórter estava saboroso, mas não como a lula escolhida pelo economista, que costuma ir ao restaurante só para pedir o prato.

Após um livro sobre Shakespeare, em que, orgulhoso, contribuiu para a fortuna crítica shakespeariana com o cálculo original de quanto valeria hoje a fortuna monetária do próprio bardo, Franco patrocinou a tradução de livro sobre artes plásticas "Arte e Dinheiro". Diz gostar de arte contemporânea, mas reclama dos preços das obras. Lamenta estar tão valorizada a gravura de Cildo Meireles que ilustra a capa do livro "Zero Cruzeiro". "Na primeira vez em que vi, numa galeria, não custava quase nada, mas não achei graça, pensei: 'Pô, brincando com coisa séria..."

O último livro prefaciado por ele e editado pela Rio Bravo foi o delicioso ensaio de Hans Christoph Binswanger sobre "Dinheiro e Magia" baseado na segunda parte de "Fausto", de Goethe, que chegou a inspirar seu discurso de despedida do BC. Ele demorou a planejar a edição do livro porque não encontrava um exemplar de segunda mão do original, e não queria comprar um novo, por US$ 150. Meio pão-duro, hein, Gustavo? (surpreso, ele ralha, incorporando Pessoa, ou Machado, entre risos: "Que coisa mais insolente!"). "Eu compro muito livro, 20, 30 por mês; controlar o vício é duro."

O controlado liberal Franco já confessou, no passado, ter votado em Fernando Collor para a Presidência "em legítima defesa" contra Lula. Admite que o voto em José Serra teve a mesma motivação, "não era o candidato ideal". Quem seria? "Fernando Henrique, Pedro Malan seriam candidatos de sonho."

FHC e Malan o apoiaram em um dos episódios mais dolorosos da vida do economista, o chamado caso Banestado, escândalo sobre remessas de dinheiro ao exterior que acabou misturando em uma CPI todo tipo de pessoa ligada de alguma maneira a contas CC5, alternativa legal de remeter divisas para fora do Brasil. O relator da CPI, José Mentor, vinculado ao então presidente do PT José Dirceu - e, tempos depois, envolvido ele próprio em um escândalo, o do mensalão -, pediu indiciamento de Franco, então presidente do BC.

Os processos judiciais contra Franco o deixaram tenso, e abalaram os filhos mais novos (ele tem quatro, dois deles na adolescência e outros dois já formados, uma em direito, trabalhando na área financeira, outro em cinema). Foi absolvido de todos os processos, em segunda instância. "Passou. Não me queixo, embora tenha havido exagero, tanto do Ministério Público quanto da militância petista, que abusou da ação popular", diz. "Eu queria ver o mesmo tratamento para os mensaleiros; ver enfrentarem o mesmo rigor que o Ministério Público teve conosco". Inocentado, diz querer "julgamento justo, sem impunidade" para que seus adversários justifiquem os recursos de campanha não contabilizados, razão do escândalo no governo do PT.

Entre os candidatos na disputa presidencial, prefere Aécio Neves, que considera capaz de "renovar a linguagem do partido". Poderia incorporar "as virtudes do governo Lula e Dilma, que eram do PSDB na origem", diz, citando o câmbio flutuante, a meta de inflação e o superávit primário nas contas públicas. "Dá para dizer que essa criatura é nossa, mas o importante a essa altura da vida é que tenha se tornado política de Estado", diz.

Os juros altos são o desafio para o governo, como foi a hiperinflação no passado, e uma das barreiras à queda dos juros para um dígito, nos bancos, é a competição com a caderneta de poupança, acredita. "Daqui para a frente vai precisar mexer na poupança e uma porção de outras coisas, mas vejo a administração hesitar." Um desafio urgente é o aumento de investimentos no país (taxa de formação bruta de capital fixo, em língua de economista). "Isso significa mudar hábitos quase seculares de empresário que sempre considerou beijo de morte tomar empréstimo fora do BNDES".

Para mudar o custo de crédito, diz ser preciso mexer em mecanismos do sistema financeiro, "próprios do mundo de juros nominais elevados", como a Selic, os CDI, instrumentos que nada mudaram, 15 anos após a vitória contra a hiperinflação. Admite: é difícil. Os depósitos compulsórios dos bancos alimentam o crédito agrícola, por exemplo. "Tudo começa com o tamanho do superávit primário..."

O garçom interrompe, com a sobremesa, que Franco escolhe fora do mostruário de doces: um sorvete "de chocolate chop chip". Ele critica o prazo curto de rolagem da dívida pública, exigência de credores habituados à remuneração diária. Pede o bloco de notas do repórter e apela ao desenho: "O juro que afeta a formação bruta de capital fixo é este aqui", diz, apontando uma dramática curva ascendente que retrata os juros do setor privado. "Não adianta contar com o capital externo."

Hora de lembrar que o real se apoiou fortemente no capital externo. Franco recorda a barra-pesada internacional encontrada pelos autores do Plano Real, que, em meio a crises, derrubaram a inflação de 1998 para 1,6%. "Um recorde pessoal, tá?" O câmbio sobrevalorizado foi o tsunami cambial da época, diz. "Como o ministro Mantega, não conseguimos desvalorizar a taxa de câmbio", diz, lembrando os sucessivos leilões cambiais no governo FHC. "Mas a gente precisava disso para dar a estocada final na inflação; agora não, a situação é criada pela política fiscal", diz, e repara: "Hoje o câmbio está mais baixo que na minha época".

quarta-feira, 4 de abril de 2012

A Economia perde Alice Amsden


Via jbdela


Morta precocemente há duas semanas, pesquisadora heterodoxa norte-americana examinou a fundo papel do Estado e do conhecimento na superação do atraso econômico.



Alice Amsden (1944-2012)


Os economistas heterodoxos do mundo todo estão de luto. No dia 14 de março, faleceu subitamente, aos 68 anos de idade, a professora do Massachusetts Institute of Technology (MIT) Alice Hoffernberg Amsden, uma das principais vozes da nova economia política - que hoje tem como representantes autores como Ha-Joon Chang, Joseph Stiglitz e Dani Rodrik - e umas das maiores especialistas em política industrial e industrialização tardia dos últimos tempos.

Em um período de "fim da história" (autoproclamado pelos Estados Unidos através do historiador Francis Fukuyama na queda do muro de Berlim) e completa ascensão do pensamento neoliberal no período de intensificação da globalização econômica e redefinição política pró-mercado das instituições de Bretton Woods (Fundo Monetário International e o Banco Mundial), Alice Amsden desafiou o pensamento econômico mainstream ao defender a importância do Estado na promoção da industrialização tardia e desenvolvimento. Seu livro de 1989 Asia's Next Giant: South Korea and Late Industrialization contestou a explicação de economistas de instituições financeiras internacionais sediadas em Washington de que o sucesso econômico da Coreia do Sul estava ligado simplesmente ao investimento em educação e adoção dos princípios de livre-mercado. Para Amsdem, a Coreia do Sul teve um crescimento estrondoso pois as instituições nas quais a industrialização tardia se baseava haviam sido adminsitradas de forma diferente dos mandamentos neoliberais, valendo-se de um Estado intervencionista, grupos empresariais diversificados, uma oferta abundante de competentes engenheiros e gerentes assalariados, bem como uma oferta abundante de massa trabalhadora bem educada e de baixo custo.

O economista do Ipea Mansueta Almeida, formado pela MIT, foi aluno de Alice Amsden e comentou em seu blog a importância de sua obra e as polêmicas interpretações que poderiam ser feitas na comparação entre Coreia e Brasil (muita cenoura e pouco chicote). Escreveu Mansueto direto de Cambrigde: "Para quem participa do debate sobre política industrial, com certeza já leu os seus livros. Ela foi minha professora aqui e era uma pessoa sempre interessante de conversar. O seu livro de 1992 foi um dos primeiros a desafiar a interpretação do Banco Mundial de que o milagre asiático decorreu apenas de reformas pró-mercado e de investimentos em educação. Alice mostrou que a Coreia do Sul adotou políticas tão ou mais intervencionistas do que os países Latino Americanos, com a diferença que na Coreia, como ela falava, 'nada era dado de graça'. Os subsídios estavam sujeitos a 'performance requirements' exigidos de cada grupo empresarial. Uma ideia que na literatura de política industrial se passou a chamar de stick-and-carrot policies. Segundo ela, foi isso que faltou na América Latina: havia muita cenoura e pouco porrete". Em 1992, a obra sobre a experiência da Coreia foi premiada como "melhor livro de Economia Política" pela Associação Norte-Americana de Ciência Política.

Em 2001, Alice Amsden publicou outra obra de fôlego, The Rise of "The Rest": Challenges to the West From Late-Industrializing Economies, publicado no Brasil com o título "A Ascensão do Resto". No livro, como afirma o sociólogo Glauco Arbix (atual presidente da Finep) na apresentação da edição brasileira, "Amsden continua ancorada nos pilares de sua análise anterior sobre o caso coreno. Neste livro, porém, amplia e desenvolve ainda mais sua preocupação central, identificando um grupo de países ('latecomers', os que chegaram depois) que estariam transitando para o desenvolvimento, ainda que diferenciadamente. O que teria levado esse grupo a ocupar um lugar de proeminência na arena internacional, apesar de sua condição de “atrasado”? Maior liberalização – e conseqüente melhor funcionamento – de sua economia, segundo as regras do livre mercado? Instituições mais eficientes? Sua maior integração no comércio internacional? Para Amsden, esse segredo só pode ser encontrado na recuperação do lugar do Estado e no seu papel chave no comando de estratégias nacionais de desenvolvimento. (...) A incursão teórica da autora destaca o lugar especial que passou a ocupar a geração de conhecimento e o desenvolvimento de tecnologia no mundo do pós-guerra. Todos esses países, em maior ou menor grau, perceberam essa nova realidade e dotaram-se de instrumentos e políticas que valorizaram e permitiram essa busca intensiva de conhecimento para qualificar o seu sistema produtivo ainda incipiente. Como é reconhecido, esse conhecimento ligado à produção e aos processos de inovação nem sempre são facilmente comprados, copiados ou mesmo recriados. Não somente seus mecanismos mais sutis são protegidos pelas empresas, como, fundamentalmente, há dimensões desse conhecimento que não podem ser codificadas. Trata-se do conhecimento tácito, de difícil apreensão. Essa ênfase na novidade introduzida pelo conhecimento e pela tecnologia é provavelmente o ponto mais forte se deu livro, cujo valor tende a ser diminuído quando a leitura é mais ligeira – afinal, a saliência da mão forte do Estado é mais facilmente apreendida e, sem dúvida, também mais polêmica".

Inspirada por economistas como Alexander Gerschenkron (e seus insights de que a ordem cronológica da industrialização importa), Amsden era reconhecida como umas das mais importantes estudiosas do processo de catch up entre países industrializados (Reino Unido, França, Alemanha e Estados Unidos) e países de "industrialização tardia" do século XX, destacando a importância das instituições e da intervenção estatal na promoção do crescimento econômico em uma economia cada vez mais baseada no conhecimento. Seu foco de análise sempre esteve mais direcionado para a Ásia, apesar de ter escrito sobre a experiência brasileira e latino-americana em alguns momentos. Sua obra há de ser descoberta não somente por economistas brasileiros, mas por cientistas sociais e juristas interessados nos arranjos institucionais de indução ao desenvolvimento.

Em tempos do "retorno do Estado" e "retorno da política industrial" no cenário pós-crise (2008-2012), a robusta análise empírica de Amsden se mostra extremamente necessária e atual. Infelizmente, sua teoria econômica ainda não foi totalmente reconhecida pelas instituições internacionais e pelas tradicionais universidades ocidente. Apesar de ser amplamente conhecida entre os economistas brasileiros (em especial entre os heterodoxos da Unicamp e da FGV-SP), somente agora que o Banco Mundial tem publicado trabalhos na linha chamada "new structural economics", na qual reconhece a importância de políticas industriais para o processo de desenvolvimento.

Há poucos registros de palestras ministradas por Alice Amsden. Abaixo, é possível vê-la falar sobre "empreendedorismo asiático" em setembro de 2008 na Universidade de Copenhagen (Dinamarca). Na palestra, Amsden destaca a importância das políticas industriais e dos policy rights no processo de experimentação, aprendizado e desenvolvimento.

A riqueza do pensamento de Amsden está na contestação de fórmulas simplistas de desenvolvimento (one-size fits all) através de análises empíricas que unem história, economia, política e direito. O legado amsdeniano tem um potencial enorme na academia, de teor crítico e interdisciplinar. Economia e política são inseparáveis. Isso Alice sabia bem.