sexta-feira, 13 de abril de 2012

Um liberal "ma non troppo"





Valor 13/04

Para muita gente, ele dificilmente deixará de ser o arrogante presidente do Banco Central que sustentou a política de real sobrevalorizado até que a crise da Rússia sacudiu a economia brasileira. Um abalo que o derrubou do BC e, meses depois, obrigou o governo a liberar de vez a moeda brasileira para flutuar ao sabor do mercado. Hoje sócio da Rio Bravo Investimentos, Gustavo Franco não mostra nenhuma arrogância. É gentil, paciente, sem deixar de ser apaixonado pelo que faz, seja na economia ou na literatura.
Franco, que completou 56 anos nesta semana, chega ao Antiquarius - afamado restaurante português próximo à praia, no Leblon -, poucos minutos após o horário marcado, acata a sugestão de subir ao mezanino, onde há uma mesa reservada para a conversa e, no caminho, explica por que reduziu as intervenções no debate público e abandonou as colunas regulares que tinha na imprensa. "Não dá tempo!" Queria pesquisar e escrever em projetos de fôlego, e a vida de colunista o impedia. "Quando escrevia na 'Folha' comecei a pensar que estava virando jornalista."

- Parece pejorativo, esse comentário.

- Não, de jeito nenhum, mas o jornalismo requer uma postura diante dos eventos mais, mais...

- Mais superficial.

- Você está dizendo [concorda, rindo]. Os artigos davam muita vontade de escrever mais profundamente sobre os temas, e não conseguia. Precisava comentar, na semana, um assunto que, com o tempo, iria perder importância, mas naquele momento era o que se queria ouvir.

Franco mora, hoje, no apartamento de 600 metros quadrados que herdou do pai, no elegante bairro de São Conrado. Herdou também uma confortável situação financeira, um patrimônio de imóveis que o dispensaria de trabalhar, algo que não passa pela cabeça do bem-sucedido consultor financeiro, até hoje professor na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), de onde saiu para trabalhar no Ministério da Fazenda sob Fernando Henrique Cardoso. No curso (que não dará neste semestre), ele ensina aos alunos a necessária relação entre direito e economia, baseado em sua experiência nos embates com os assessores jurídicos durante o Plano Real.

Apesar das queixas sobre falta de tempo, tornou-se ensaísta bem-sucedido no território insólito que une artes e dinheiro. No livro "Cartas a um Jovem Economista", em que traduz sua experiência, em tom confessional, diz, irônico, que economistas, como outros profissionais, erram, o que só significa que é preciso trabalhar duro: "Nessa profissão em que não há base científica para o ofício de profeta, mas há enorme demanda por profecia".

O economista, para Gustavo Franco, tem algo de pregador ou de militante, e ele acha que as "circunstâncias" o fizeram cumprir esse papel. "Acho que foi Paul Krugman quem disse: 'no domínio das políticas públicas, fazer significa empreender, convencer as pessoas'."

Sem gravata, de camisa social e terno, ele parece pouco à vontade, pela maneira como esfrega as mãos. O garçom interrompe a conversa para apresentar uma espécie de campainha ("se precisarem de alguma coisa").

O economista diz que, na tarefa de empreender a política publica, às vezes existe um "terreno conflagrado", que pede confronto, "não desleal, mas contundente". É um papel que cumpriu no governo. "Gosto desse papel, não tenho nenhum problema com isso."

O folclore em torno dele inclui uma reunião em São Paulo, na qual, após ouvir queixas contra a abertura econômica e o câmbio de um empresário do setor calçadista, teria avisado: "Seu setor vai acabar". Mais tarde, Franco negou o incidente, que, hoje, diz ter sido possível. "Falei coisas do gênero, sim, em situações parecidas, inclusive com gente amiga."

Virou piada familiar: um parente, empresário do setor têxtil, foi convidado para um fondue na casa do economista e levou queijo, mesmo prevenido contra a iniciativa. "Detesto queijo. Na época, comíamos na minha mesa de trabalho, na biblioteca. A ideia do cheiro de queijo em meus livros era impensável." Não serviram o fondue levado pelo amigo, que, durante a conversa, lhe perguntou o que pensava do futuro da indústria têxtil. "Disse umas verdades; todas aconteceram: ele foi arrasado pelos coreanos", lembra. E na família ficou a lenda: "Não mexam com o Gustavo nisso, de queijo, que ele lança uma maldição".

Com manteiga não tem inimizade; mas queijo, ou leite, nem pensar. Uma amiga lhe dizia que essa aversão pedia tratamento com psicanalista. Franco fez análise, e, quando teve alta, constatou, no bandejão da PUC, que Freud era ineficaz contra fobia a certos laticínios. Em economia, também, o liberalismo de Franco pouco tem de freudiano, ainda que ele seja filho de um fundador do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), um dos mais próximos auxiliares de Getúlio Vargas, Guilherme Arinos Lima Verde de Barroso Franco, filho de professora do interior do Amazonas. Concursado no Banco do Brasil, encantou Getúlio, que chegou a acompanhar durante o retiro na fazenda de São Borja. O nascimento de Gustavo está ligado, de certa forma, ao suicídio do líder populista.

Guilherme Arinos de Barroso Franco estava no palácio quando Getúlio se suicidou. Por influência do líder, havia sido poderoso chefe de gabinete em duas gestões do Ministério da Fazenda e só não foi designado interventor no Amazonas porque a noiva, Maria Isabel, não aceitou. Ela até entendia a dedicação de Guilherme a Getúlio, que a obrigou a estender o noivado por quase uma década. Mas, com o suicídio do presidente, deu um ultimato ao noivo: casaram-se e, 20 meses depois, vinha ao mundo Gustavo Henrique de Barroso Franco.

Com a morte de Getúlio, o pai de Gustavo Franco acompanhou a implantação da indústria automobilística, na direção do grupo Monteiro Aranha, que traria a Volkswagen ao Brasil. Já na faculdade, Gustavo fez estágio na corretora Garantia, hoje banco, onde o pai foi sócio. Decidiu estudar economia por influência paterna, mas o assunto não costumava ser discutido em casa. O pai, discreto, nem lhe contava dos debates homéricos que teve, no BNDES, com o amigo Roberto Campos, cofundador do banco. Divergências operacionais, ditadas pelo pragmatismo de Guilherme, garante o filho. "Nenhum dos dois era desenvolvimentista", assegura ele, que jura ser liberal "ma non troppo". "No contexto americano, de Estado mínimo, sou um heterodoxo."

"No Brasil, as situações e a experiência de política econômica são heterodoxas", diz. "Temos de navegar em um mundo de intervenção do Estado, onde o Estado é pesado." A PUC do Rio, "esse antro de neoliberais" onde estudou e até hoje dá aulas, é dissidência da Fundação Getúlio Vargas, essa sim, escola que seguiu por mais tempo o ideário ultraliberal da Escola de Chicago, que dominou países como o Chile nos anos 70.

Na PUC dos anos 70, Franco, estagiário, ajudou Edmar Bacha a escrever um bem-sucedido livro de introdução à economia, baseado no marxista polonês Michael Kalecki- o "Keynes de esquerda", para alguns, por ter antecipado ideias de John Maynard Keynes, santo padroeiro de muitos desenvolvimentistas. "O Edmar diz que eu é quem era o kaleckiano. Outro dia lemos que na Argentina queriam obrigar todo mundo a estudar Kalecki e pensamos: 'Ora, vamos reeditar o livro'", brinca.

Após 40 minutos de conversa, pela primeira vez é acionada a campainha de chamar garçom. "Pode trazer aquelas coisinhas", pede Franco, íntimo da casa e do couvert, com delicados croquetes, risoles e outros acepipes. Indiferente ao ruído ambiente, Franco conta que, como professor na PUC, até adotou o manual kaleckiano escrito com Bacha.

"Seria ridículo ensinar economia pegando manual americano, escrito para um estudante que nem sabia o que era inflação, do tamanho que tínhamos, na época", defende-se. "Hoje, à medida que o Brasil fica mais normal, a integração com os livros-texto de outras partes do mundo fica mais tranquila."

Mas a economia brasileira não é excepcional? "É um velho tema", responde. E revela que, depois de ter produzido livros sobre a economia nas obras de Fernando Pessoa, Machado de Assis, Shakespeare e Goethe, se dedica a Kafka. Não o tcheco, Franz, mas um primo distante, o brasileiro Alexandre Kafka, ex-diretor do Brasil no FMI.

O Kafka brasileiro elaborou, nos anos 50, dez leis sobre a economia brasileira, uma delas, a "lei do comportamento discrepante", quando ainda era o Banco do Brasil que fazia política monetária: "Independentemente dos homens e suas intenções, sempre que o ministro da Fazenda se entrega à austeridade financeira, o Banco do Brasil escancara os cofres e vice-versa". Franco pretende atualizar e ampliar essas leis em um novo livro. "Não são leis da teoria, mas da sabedoria da política econômica, perfeitamente explicáveis dentro da teoria convencional."

"Simpatizo com a ideia de que o Brasil é meio diferente, mas morro de medo das implicações desse tipo de postura, principalmente no ensino." Admitir a excepcionalidade brasileira pode levar ao desprezo pelo estudo da teoria, na crença de que homens práticos, treinados na escola da vida, podem fazer coisas que dão certo, no fim, argumenta o filho de Guilherme Arinos, sem se dar conta da implicação edipiana do raciocínio.

Enquanto o garçom serve água, Franco conta sua experiência de edição, iniciada com a ideia, na Rio Bravo, de distribuir um livro como brinde de fim de ano, em lugar das óbvias agendas. Escolheram um discurso marcante de Rui Barbosa, feito antes do golpe de Floriano Peixoto na República recém-instalada. Franco fez a longa introdução ao texto, como historiador que é, autor de um ensaio sobre essa época que, na década de 80, lhe rendeu o prestigiado prêmio BNDES (Ph.D. por Harvard, sua tese lhe deu outro prêmio, o da Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia).

O êxito do livro e a decisão de repetir a dose no fim do ano seguinte levariam o economista a se lembrar de uma resenha, "Pessoa Neoliberal", do jornalista Carlos Franco (nenhum parentesco), sobre textos de Fernando Pessoa dedicados a temas econômicos. Gustavo Franco teve a ideia de organizar os textos do poeta em verbetes atuais. Embora não existissem os termos, Pessoa escreveu sobre globalização, privatizações e até e-mails. "Ele tem um texto sobre correspondência comercial, encantador, que é um guia para a escrita de e-mails", diz Franco. Ele publicou, a seguir, um livro com crônicas econômicas de Machado de Assis, por sugestão de Mário Rosso, especialista no escritor brasileiro. Reuniu, pela primeira vez, textos sobre um personagem machadiano nada mencionado, o "rentista", aplicador que, do Império à República, não se importa com a situação da empresa em que investe, desde que lhe garantam os dividendos.

Chegam os pratos e as lulas grelhadas pedidas por Franco são, claramente, a melhor pedida. Uma demonstração prática de como é injusta a assimetria de informações do mercado: o cordeiro pedido pelo repórter estava saboroso, mas não como a lula escolhida pelo economista, que costuma ir ao restaurante só para pedir o prato.

Após um livro sobre Shakespeare, em que, orgulhoso, contribuiu para a fortuna crítica shakespeariana com o cálculo original de quanto valeria hoje a fortuna monetária do próprio bardo, Franco patrocinou a tradução de livro sobre artes plásticas "Arte e Dinheiro". Diz gostar de arte contemporânea, mas reclama dos preços das obras. Lamenta estar tão valorizada a gravura de Cildo Meireles que ilustra a capa do livro "Zero Cruzeiro". "Na primeira vez em que vi, numa galeria, não custava quase nada, mas não achei graça, pensei: 'Pô, brincando com coisa séria..."

O último livro prefaciado por ele e editado pela Rio Bravo foi o delicioso ensaio de Hans Christoph Binswanger sobre "Dinheiro e Magia" baseado na segunda parte de "Fausto", de Goethe, que chegou a inspirar seu discurso de despedida do BC. Ele demorou a planejar a edição do livro porque não encontrava um exemplar de segunda mão do original, e não queria comprar um novo, por US$ 150. Meio pão-duro, hein, Gustavo? (surpreso, ele ralha, incorporando Pessoa, ou Machado, entre risos: "Que coisa mais insolente!"). "Eu compro muito livro, 20, 30 por mês; controlar o vício é duro."

O controlado liberal Franco já confessou, no passado, ter votado em Fernando Collor para a Presidência "em legítima defesa" contra Lula. Admite que o voto em José Serra teve a mesma motivação, "não era o candidato ideal". Quem seria? "Fernando Henrique, Pedro Malan seriam candidatos de sonho."

FHC e Malan o apoiaram em um dos episódios mais dolorosos da vida do economista, o chamado caso Banestado, escândalo sobre remessas de dinheiro ao exterior que acabou misturando em uma CPI todo tipo de pessoa ligada de alguma maneira a contas CC5, alternativa legal de remeter divisas para fora do Brasil. O relator da CPI, José Mentor, vinculado ao então presidente do PT José Dirceu - e, tempos depois, envolvido ele próprio em um escândalo, o do mensalão -, pediu indiciamento de Franco, então presidente do BC.

Os processos judiciais contra Franco o deixaram tenso, e abalaram os filhos mais novos (ele tem quatro, dois deles na adolescência e outros dois já formados, uma em direito, trabalhando na área financeira, outro em cinema). Foi absolvido de todos os processos, em segunda instância. "Passou. Não me queixo, embora tenha havido exagero, tanto do Ministério Público quanto da militância petista, que abusou da ação popular", diz. "Eu queria ver o mesmo tratamento para os mensaleiros; ver enfrentarem o mesmo rigor que o Ministério Público teve conosco". Inocentado, diz querer "julgamento justo, sem impunidade" para que seus adversários justifiquem os recursos de campanha não contabilizados, razão do escândalo no governo do PT.

Entre os candidatos na disputa presidencial, prefere Aécio Neves, que considera capaz de "renovar a linguagem do partido". Poderia incorporar "as virtudes do governo Lula e Dilma, que eram do PSDB na origem", diz, citando o câmbio flutuante, a meta de inflação e o superávit primário nas contas públicas. "Dá para dizer que essa criatura é nossa, mas o importante a essa altura da vida é que tenha se tornado política de Estado", diz.

Os juros altos são o desafio para o governo, como foi a hiperinflação no passado, e uma das barreiras à queda dos juros para um dígito, nos bancos, é a competição com a caderneta de poupança, acredita. "Daqui para a frente vai precisar mexer na poupança e uma porção de outras coisas, mas vejo a administração hesitar." Um desafio urgente é o aumento de investimentos no país (taxa de formação bruta de capital fixo, em língua de economista). "Isso significa mudar hábitos quase seculares de empresário que sempre considerou beijo de morte tomar empréstimo fora do BNDES".

Para mudar o custo de crédito, diz ser preciso mexer em mecanismos do sistema financeiro, "próprios do mundo de juros nominais elevados", como a Selic, os CDI, instrumentos que nada mudaram, 15 anos após a vitória contra a hiperinflação. Admite: é difícil. Os depósitos compulsórios dos bancos alimentam o crédito agrícola, por exemplo. "Tudo começa com o tamanho do superávit primário..."

O garçom interrompe, com a sobremesa, que Franco escolhe fora do mostruário de doces: um sorvete "de chocolate chop chip". Ele critica o prazo curto de rolagem da dívida pública, exigência de credores habituados à remuneração diária. Pede o bloco de notas do repórter e apela ao desenho: "O juro que afeta a formação bruta de capital fixo é este aqui", diz, apontando uma dramática curva ascendente que retrata os juros do setor privado. "Não adianta contar com o capital externo."

Hora de lembrar que o real se apoiou fortemente no capital externo. Franco recorda a barra-pesada internacional encontrada pelos autores do Plano Real, que, em meio a crises, derrubaram a inflação de 1998 para 1,6%. "Um recorde pessoal, tá?" O câmbio sobrevalorizado foi o tsunami cambial da época, diz. "Como o ministro Mantega, não conseguimos desvalorizar a taxa de câmbio", diz, lembrando os sucessivos leilões cambiais no governo FHC. "Mas a gente precisava disso para dar a estocada final na inflação; agora não, a situação é criada pela política fiscal", diz, e repara: "Hoje o câmbio está mais baixo que na minha época".

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