sexta-feira, 25 de maio de 2012

Meio século em Paris

Valor 25/05


Maior bilheteria da carreira de Woody Allen no mercado americano, "Meia-Noite em Paris" parece ter mexido com a corda de nostalgia que habita parte da humanidade. Um desejo de frequentar outras épocas, ser contemporâneo de homens admirados e, para os que ainda têm uma relação visceral com as artes, a sorte de observar de perto o aparecimento de obras e artistas que ainda hoje reverberam.

O filme de Allen oferece porções generosas de cada uma dessas possibilidades, fazendo de seu charmoso Peugeot anos 1920 uma nova versão da máquina do tempo. Ao menos para seus personagens. Para nós, seres tridimensionais que habitam as ruas das cidades, o Metropolitan de Nova York oferece ótima opção até o próximo fim de semana: a mostra "The Steins Collect - Matisse, Picasso and the Parisian Avant-Garde", que conta o papel dos irmãos Stein na cena cultural parisiense das primeiras décadas do século passado.

Judeus de classe média alta, os Stein nasceram em Pittsburgh, filhos de um empresário do setor têxtil, e cresceram em Oakland, na Califórnia. Com a morte do pai, no começo da década de 1890, Michael, Leo e Gertrude seguiram por caminhos próprios até se reagruparem em Paris na década seguinte.

Michael, o irmão mais velho, assumiu os negócios da família e fez carreira na companhia de bondes de San Francisco. Leo largou Harvard, onde estudava direito, para realizar uma viagem pelo mundo, e na volta foi estudar na Johns Hopkins, em Baltimore, onde dividiu um apartamento com Gertrude.

Nenhum dos dois se formou, e em 1900 Leo seguiu para Fiesole, nos arredores de Florença, para estudar pintura. Pode-se localizar aí a gênese dos interesses que ganhariam corpo em Paris. Na Itália, Leo iria conviver com os pintores e herdeiros Egisto Fabbri e Charles Loeser, que iniciavam naquele momento sua famosa coleção de Paul Cézanne. Incentivado por um amigo, o historiador da arte Bernard Berenson, Leo adquiriu suas primeiras obras do autor de "Grandes Banhistas".

Em dezembro de 1902, numa parada em Paris, retornando de uma viagem a Londres, Leo saiu para jantar com um amigo, o violoncelista Pablo Casals. Tomado pela atmosfera artística parisiense, resolveu se mudar para a cidade. Com a ajuda de um primo, encontrou o apartamento-estúdio na rua de Fleurus, onde se instalou. Próxima ao Jardim de Luxemburgo, a rua de Fleurus se tornaria o epicentro da vida dos Stein na cidade. Leo passaria ali mais de uma década. Gertrude, que chegaria no outono de 1903, para viver com irmão, permaneceria no endereço na companhia de Alice B. Toklas até 1938.

Apesar de usufruir da renda de investimentos e aluguéis da família, os Stein viviam de retiradas modestas. É o apuro estético que lhes garantiria as aquisições. Leo, que iniciara seu acervo na Itália, havia adquirido, na sequência, obras de Degas, Van Gogh e Manet, mas logo percebeu que seus recursos seriam insuficientes para uma coleção de autores já consagrados. Foi quando passou a se interessar por jovens artistas relativamente desconhecidos.

Com essas ideias em mente, o segundo Salon d'Automne, em outubro de 1904, iria funcionar como um divisor de águas na trajetória de Leo e Gertrude. Após visitar a retrospectiva - dedicada a cinco dos mais relevantes artistas em atividade, entre eles Cézanne, Renoir e Toulouse-Lautrec - eles resolvem gastar todas as suas economias em arte moderna.

Michael havia chegado a Paris no começo daquele ano - muito por conta de Sarah, sua mulher, estudante de artes -, instalando-se num apartamento próximo ao de seus irmãos. A ideia do casal era passar um ano na cidade, mas acabaram ficando três décadas. Alguns meses depois, ele informou a Leo e Gertrude uma receita extra de US$ 1.600 proveniente de seus investimentos. Eles resolvem então agrupar seus recursos para comprar obras de arte em vez de títulos.

Além do apuro estético, uma rara capacidade agregadora também fazia parte dos talentos dos Stein. Foram eles, por exemplo, que apresentaram Matisse a Picasso, provavelmente no fim de 1905. E se ampliou nas noites de sábado, quando tanto a rua de Fleurus, quanto o apartamento de Sarah e Michael passaram a receber qualquer um com uma referência em mãos. Artistas, escritores, músicos e colecionadores prontos a discutir os últimos desenvolvimentos artísticos e contemplar um acervo magnífico num ambiente iluminado à base de fósforos.

Os Stein acabaram criando laços com os artistas cujos trabalhos possuíam. Nadavam com Matisse, de quem Michael e Sarah se tornaram íntimos; a namorada de Picasso ensinava francês a Alice Toklas, que chegou de San Francisco em 1910. Outra mudança notável foi o abandono de antigos padrões aristocráticos pela boemia local, tão bem retratado nas indefectíveis sandálias de Gertrude e no vegetarianismo de Leo, material farto para as fofocas dos amigos americanos que os visitavam.

A crescente surdez de Leo levava-o a se afastar dos encontros de sábado. E, em 1913, ele resolveu deixar a rua de Fleurus. Havia também um fastio, exposto em sua correspondência, na convivência com a irmã, que lhe parecia cada vez mais interessada em reconhecimento e glória, algo que não condizia com seu temperamento. Leo e Gertrude acabaram por dividir a coleção - entre outras obras, ela ficou com os quadros de Picasso e Leo, com 16 obras de Renoir.

Gertrude acentuou as impressões de seu irmão com a publicação de "A Autobiografia de Alice B. Toklas". Se, por um lado, ela ampliou o peso de sua influência sobre várias gerações de artistas - uma longa lista que vai de Hemingway a Cartier-Bresson, de Scott Fitzgerald a Picabia - por outro, passou a ser cercada por polêmicas e discórdias, como o manifesto "Testemunho contra Gertrude Stein", de 1935, assinado por Matisse, Braque, Tzara, entre outros, que questionava sua versão sobre a cena artística parisiense.

De todos os Stein, apenas Gertrude manteve sua coleção até o fim da vida, sobrevivendo inclusive à invasão nazista. Já o acervo de Michael e Sarah sofreu impacto devastador com a Primeira Guerra. Eles haviam cedido parte de suas obras de Matisse para uma exibição do pintor em Berlim, em julho de 1914. Com o início do conflito no mês seguinte, os quadros ficaram retidos na Alemanha. Após anos de negociações, o casal optou por vendê-los para dois colecionadores escandinavos.
O painel que abre a mostra oferece uma ideia visual dessas relações. Um amplo mapa de Paris, demarcando residências, ateliês e galerias espalhados pela cidade, nas primeiras décadas do século XX. A impressão, que resiste ao contemplá-lo, é de que a rede de influências daqueles três irmãos americanos se espalha, adensando-se como um metal de liga, unindo de modo imperceptível cada um daqueles pontos assinalados, que ainda hoje ocupam nosso imaginário com suas obras, história e enredos cinematográficos.

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