quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Arquivo: "Caminho do meio" explica pujança chinesa


Os que ainda supõem que o modelo chinês seja baseado em trabalho escravo não perderiam nada em ler com atenção esse artigo.
Entrevista com o ex-professor Antônio Barros de Castro, um dos maiores economistas desse país, que faleceu ontem de modo trágico
e absurdo aqui no Rio de Janeiro.

Werter de Macêdo

A entrevista abaixo foi publicada no Valor em 7 de outubro de 2005


O economista Antonio Barros de Castro, diretor de Planejamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), acaba de chegar da China. Sua conclusão sobre o que viu é, no mínimo, inusitada. Para ele, o modelo chinês, que se contrapôs ao Consenso de Washington, é uma mistura “bomba” de mercado e Estado. Um verdadeiro caminho do meio, inspirado por Confúcio, filósofo chinês do século VI antes de Cristo. “O Ocidente passou os últimos 20 a 30 anos discutindo e pregando o recuo do Estado. Eles lá (na China) costuraram Estado e mercado de uma forma completamente original. Isso é o que denomino de híbrido chinês no plano maior. É o que define, a meu ver, a grande peculiaridade do modelo local”, diz.

Executivos de multinacionais, com os quais conversou, não se queixam de terem a rota de seus negócios definidas pelo Estado. Ao contrário, eles comemoram a atuação em um mercado que, dentro de 20 anos, contará com 900 milhões de consumidores. E o Brasil, diz ele, pode se preparar: a China não é um produtor de baixo valor agregado. Tudo que se produz lá é muito avançado. Por isso, avisa, novos setores domésticos podem se preparar para a concorrência chinesa. A seguir, os principais trechos da entrevista de Castro ao Valor:

Valor: Que impressões a China lhe deixou?

Antonio Barros de Castro: Há na praça três abordagens da questão chinesa. Uma é a que se limita a apresentar os fenomenais números chineses. A segunda está centrada no temor provocado pela China. A China é vista como uma nuvem de gafanhotos se aproximando. E isso desperta sentimentos fortes e alimenta certa sinofobia que é evidente em alguns ambientes, sobretudo na América do Norte. A terceira procura contrastar a experiência chinesa com o Consenso de Washington. Existiria um modelo chinês? Quais são as suas vantagens ou eventuais desvantagens comparada com o Consenso de Washington?

Valor: Na sua avaliação, existe um modelo chinês?

Castro: A China é tão heterogênea, tão diferente, tão completa, tão um mundo em si próprio que você não consegue ter esse modelo como referencial na cabeça. É impossível pensar a China sem um pouco de perspectiva histórica.

Valor: Como o passado da China influiu sobre seu presente?

Castro: Tanto a China, quanto a América Latina e diversas outras experiências do mundo caminharam rapidamente em direção ao mercado nos últimos 20 a 25 anos. Mas há de partida uma diferença qualitativa: a América Latina foi em direção aos mercados em resposta a crises econômicas graves, de balanço de pagamento, inflacionárias. É fundamental entender que a China se moveu em relação ao mercado por razões políticas e isso marca toda uma diferença histórica fundamental.

Valor: A China se moveu para se tornar uma grande potência?

Castro: Essas razões políticas podem ser resumidas em dois fatos absolutamente traumáticos da vida chinesa. A Revolução Cultural e o massacre da Praça da Paz Celestial. Um aconteceu entre 1966 e 1976 e outro em 4 de junho de 1989. A Revolução Cultural deixou na memória de grande parte da sociedade e da elite chinesa, muito particularmente, horror ao esquerdismo. Acendeu um medo enorme do caos e de tudo aquilo que historicamente acompanhou o caos na China: guerra civil, miséria e dominação das grandes potências. É bom nunca esquecer que estamos falando de um país no qual, há apenas um século, havia em parques, especialmente na área inglesa, cartazes do tipo “proibido para cachorros e chineses”. Então, o país emerge da revolução cultural com uma fome de ordem, segurança e progresso muito grande. E entra um segundo fator fundamental que é o colapso soviético, exatamente após o massacre da Paz Celestial. E gera insegurança no Partido Comunista Chinês e na cúpula chinesa e uma firme decisão de superar o horroroso destino soviético. Digamos que ao horror ao esquerdismo somou-se uma aversão ao burocratismo e à rigidez soviética. De tudo isso deriva uma enorme fome de rumo, ordem e avanço tranqüilo.

Valor: Mas isso não implicou democracia, liberdades individuais...

Castro: A China não está emergindo de um passado de liberdade, ela está emergindo de um caos, não tem uma Suíça por trás. A questão das liberdades individuais é bastante relativizada por este quadro. Nele, a resultante parece ser uma serena busca daquilo que Confúcio pregava como o correto, o caminho certo, o chamado caminho do meio ou híbrido chinês.

Valor: O que é o híbrido chinês?

Castro: Sob certos ângulos o mercado impera na China. Mas o Partido Comunista Chinês continua presente em tudo e o Estado é extremamente poderoso. Então, há um cruzamento de mercado com Estado e política impensável no Ocidente. O Ocidente passou os últimos 20 a 30 anos discutindo e pregando o recuo do Estado. Lá na China, eles costuraram Estado e mercado de uma forma completamente original. Isso é o que denomino híbrido chinês no plano maior. É o que define, a meu ver, a grande peculiaridade do modelo chinês, uma mistura bomba.

Valor: E como isso funciona na prática?

Castro: A este híbrido no plano macro corresponde um híbrido no plano micro. Total liberdade de gestão para as empresas do país. Mas elas têm de caminhar no rumo definido pelo Estado. O Estado define os objetivos e a empresa se candidata, negocia, entra e ruma naquela direção. O Estado planeja e determina o rumo da economia. Não é um planejamento nem soviético, nem francês, é o estabelecimento do “para onde vamos”. O que quero enfatizar é que este cruzamento entre mercado e Estado está no coração da solução chinesa. Visto por um ângulo, é capitalismo selvagem. Por outro, é uma economia moderadamente planejada, porque o planejamento nunca vai a detalhes, não complica decisões. A gestão da empresa é estritamente privada.

Valor: Como funciona a liberdade de gestão nas empresas?

Castro: Eu visitei algumas empresas e a impressão que ficou foi que eles combinam uma enorme liberdade quanto à gestão capitalista, estritamente guiada pelo mercado e pelas decisões empresariais, a um altíssimo grau de liberdade de demitir, admitir e fazer movimentos que a empresa privada não faria no Ocidente. Não há previdência e os salários são determinados ali, no jogo entre a empresa e os trabalhadores. Os preços flutuam em função da concorrência, estritamente oferta e procura.

Valor: Como é a participação do Partido Comunista no modelo?

Castro: O Partido Comunista está presente dentro das próprias fábricas. Numa empresa que visitei, no refeitório tinha uns cartazes do PC. Eu perguntei qual era a mensagem. Eram informações e instruções do partido para os trabalhadores. Indaguei a um dirigente de fábrica se essa presença tão forte do PC chinês complicava. “De forma nenhuma. Nós convivemos tranqüilamente, pacificamente.”

Valor: Esta é a receita do sucesso chinês?

Castro: Eu diria que isso está dando certo, espetacularmente do ponto de vista dos resultados econômicos. Mas não é uma coisa estática, uma solução definitiva. Umas das sensações fortes que você tem na China é de que tudo lá está sempre mudando. A isso soma-se um sistema educacional ambicioso. As pessoas pagam muito pouco para estudar. O pagamento é quase simbólico, mas todos pagam. Lá nada é de graça. O sistema de saúde é gigantesco e eficiente. O atendimento ao público é com hora marcada. O planejamento habitacional dá uma cobertura bastante ampla para os que estão nas cidades.

Valor: Como funcionam as joint ventures de empresas privadas internacionais com o Estado chinês? Elas são suas sócias minoritárias?

Castro: O sócio privado entra minoritariamente num grande número de empresas, em todas as joint ventures. Mas aos poucos ele pode ir ampliando sua participação na sociedade.

Valor: Como se dá esse aumento da participação privada?

Castro: A iniciativa não é necessariamente governamental. As empresas privadas fazem ofertas. Das 500 maiores multinacionais mais de 400 estão na China e estão caçando oportunidades e fazendo suas ofertas. E os governos locais (prefeituras e províncias) partem para parcerias. Existe uma competição política por poder através do crescimento econômico, aprofundando a natureza híbrida do negócio, algo fascinante.

Valor: O crescimento mira o mercado interno ou o externo?

Castro: Todo mundo sabe que o mercado doméstico chinês é gigantesco, efervescente, ávido por novidades. Uma das maiores surpresas que eu tive foi descobrir o mercado de luxo, nos poucos locais em que me desloquei em Xangai e Pequim.

Valor: Como existe mercado de luxo num país comunista?

Castro: Eu compreendi o fenômeno ao me deparar com a informação de que 1% dos chineses hoje tem um nível de vida muito elevado até para padrões ocidentais. Admitindo que o país tenha entre 300 e 400 milhões de famílias, isso significa que 1% ou seja, 3 a 4 milhões de famílias têm um altíssimo padrão de consumo, demandando grifes e tudo o que há de mais sofisticado no mundo capitalista. A essa camada superior se soma uma gigantesca classe média estimada entre 75 a 150 milhões de habitantes. Haveria ainda mais uns 200 a 300 milhões de pequenos consumidores e a essa totalidade estima-se que vão se juntar ao longo dos próximos 20 anos mais 300 a 400 milhões de consumidores.

Valor: Em 2025 a China terá um mercado interno de 900 milhões?

Castro: Exato. É uma coisa extraordinária. Veja o horizonte que os investidores capitalistas têm à sua frente. Um empresário me falou que é muito difícil ganhar dinheiro na China, mas vale a pena. “Nós temos muitas dores de cabeça aqui, mas o que não temos é o pesadelo de não estar aqui.”

Valor: E por que é difícil ganhar dinheiro na China?

Castro: Uma cabeça ocidental logo pensaria que a dificuldade parte das instituições hostis ao mercado, que é a interferência do Estado, do PC chinês. Não é nada disso. O problema é a bestial competição que existe no mercado doméstico chinês. É a competição que os ingleses chamam de “cortar gargantas”. O executivo que me falou disso chamou essa competição de “cruel”. E me levou a um grande supermercado para eu entender o que se passa. Visitei diferentes andares. Cada produto, tipo refrigerador, aparelho de som, televisor, tinha no mínimo 20 marcas diferentes, as ocidentais que conhecemos e pelo menos dez marcas chinesas que a gente desconhece.

Valor: E tudo produzido lá?

Castro: Tudo é produzido lá à exceção de determinados insumos, sobretudo de eletrônica. A parte mecânica eles fazem tudo. A competição é dramática.

Valor: Este vender a qualquer preço parece ser o grande diferencial chinês. Pode explicar?

Castro: Quando se vê o produto chinês chegar aqui a preços baratíssimos, é preciso lembrar que ele já sobreviveu num clima de cortar gargantas. Essa hipercompetição é estrutural devido à gigantesca capacidade de poupar da China. A poupança está associada a uma taxa de investimento da ordem de 40% do PIB chinês, que é de US$ 1 trilhão ou US$ 1.200 per capita.

Valor: O que estimula essa poupança?

Castro: Em parte porque não tem aposentadoria. O filho mais velho vai ter de cobrir a necessidade dos pais. Há compulsão a poupar, aliada a um sistema bancário frouxo, que oferece juros levemente negativos em termos reais. O que quero dizer é que você tem aí uma alavanca da expansão rápida da capacidade produtiva do país, que não é ancorada só em mão-de-obra barata. Não raro, isso resulta em excesso de capacidade e oferta.

Valor: E como lidam com essa sobreoferta?

Castro: Uma das soluções é vender internamente e exportar as sobras a preços que apenas cobrem os custos variáveis. O que acirra dramaticamente a competição e resulta numa oferta que está permanentemente evoluindo a uma taxa de crescimento espetacular.

Valor: A China é um poço de produção de bens de baixo valor agregado?

Castro: Isso não tem qualquer fundamento. Os eletrodomésticos à venda nos supermercados de Xangai não existem nas prateleiras dos supermercados brasileiros. Lá, os televisores, em regra, são de cristal líquido. Plasma é uma solução superada. É tudo da maior qualidade. Telas enormes, planas, tudo elegantérrimo e vai ver o preço, é no máximo US$ 2 mil. A China produz o que há de mais avançado.

Valor: A indústria brasileira se queixa da concorrência chinesa...

Castro: Não é toda a indústria. São certos ramos que já recuaram na América Latina e no Brasil resistiram bravamente e em muitos casos têm potencial para resistir. Mas, na presente quadra, estão em situação crescentemente difícil.

Valor: Existem produtos chineses que podem vir a se tornar novas dores de cabeça para o empresário brasileiro?

Castro: Tudo, inclusive automóvel. A produção de automóveis cresce explosivamente. A demanda por eles na China cresce 15% ao ano e a oferta cresce mais rapidamente. A China é um novo candidato não só a conquistar o mercado brasileiro, mas a competir lá fora com as nossas exportações. Os chineses já têm os seus carros compactos. Inclusive têm um compacto chinês que é um escândalo internacional, chamado KK (leia-se quê quê), que custa apenas US$ 3 mil. Eles vão entrar nesse mercado por cima, por baixo e pelo meio.

Valor: E sua conclusão sobre o que viu na China, colocadas todas essas peças na mesa?

Castro: Minha conclusão é que nenhum país funciona hoje sem ter um olho cravado na China. As diversas economias estão descobrindo que ninguém previu o despertar do dragão chinês. Todos se programaram para o mundo errado. Agora correm para corrigir a rota e se adaptar ao fenômeno.

Valor: E o Brasil neste contexto China?

Castro: Quanto ao Brasil, há trunfos inegáveis: o agronegócio e a mineração. Imbatíveis num mundo em que economias do porte da China se tornam ávidas por matérias-primas. Isso leva Brasil, Canadá e Austrália à tentação da reprimarização.

Valor: Seria a estratégia para enfrentar a China?

Castro: Esta é uma dimensão do futuro, mas aceita-la é complicado. É preciso descobrir as chances e as brechas do mundo manufatureiro, industrial. Temos de lembrar que o mercado chinês é voraz.

Valor: Então, o que o Brasil teria de fazer?

Castro: Temos mercados manufatureiros certamente se abrindo, onde se encontrará pesadamente a concorrência chinesa, mas não apenas ela. O Brasil tem de desenvolver competências específicas para explorá-los. Eu acho que aqui nós temos de pensar numa política de competências distintas. Mas como o Brasil vai fazer isso é uma enorme incógnita.

Valor: Há chances para o Brasil nesse cenário?

Castro: Até o crescimento chinês é uma fascinante oportunidade para o Brasil, ainda mais na medida em que aumentar a sofisticação da massa chinesa. Cerca de 200 milhões de chineses saíram da fome nos últimos anos. É preciso se preparar para disputar e ganhar esse mercado.

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