sexta-feira, 19 de agosto de 2011

No meio do caminho havia um muro em Berlim


Num dia de chuva, no Rio de Janeiro da Noruega, em Bergen, conheci três portuguesas. O dia não seria diferente, lá chove cerca de 300 dias por ano, Bergen é uma das cidades mais chuvosas da Europa. Por ser muito caro, a Noruega era um país contra-indicado para mochileiros. Barato, só o caviar, a preço de banana. Mas as bananas tinham preço de caviar.

Num supermercado, as portuguesas resolveram comprar bananas. Compraram umas machucadas, de casca muito madura, as mais baratas. Na saída, ressaltaram o quanto haviam economizado em escudos. As portuguesas reclamavam muito do preço da alimentação na Noruega. De tanto ouvir reclamação, propus: “Vamos a um país comunista, comida lá é quase de graça. Que tal Berlim Oriental?” Duas concordaram de imediato e a terceira previu: “O falhanço do comunismo não tardará. O muro dura no máximo uns cinco anos”.

Terminada a visita a Bergen, pegamos um trem e passamos por Copenhague em direção a Hamburgo, onde compraríamos o bilhete para Berlim Ocidental, que ficava encravada no território da Alemanha Oriental. Nosso passe de trem não era válido no leste europeu. Numa das viagens de trem, eu tinha conhecido um alemão que fugira da Alemanha Oriental. Ele se queixou muito do regime comunista. À época, eu tinha pendores esquerdistas, cheguei até a pensar em tentar convencer o alemão de que ele não deveria ter fugido. Mas eu me basearia apenas no que ouvia nas assembleias do centro acadêmico de engenharia da Universidade Federal do Ceará, formado por moços de classe média que queriam fazer a revolução.

Noutra viagem de trem, um alemão ocidental garantira que, dos países comunistas, a Alemanha Oriental era o mais avançado. “Se você for lá um dia, verá que o mais avançado dos países comunistas ainda está muito atrasado”, assegurou. Com base no que contaram esses dois alemães, a viagem a Berlim Oriental passou a ter importância maior, além de comer barato: verificar se o alemão que fugiu e o que não precisou fugir tinham razão. As portuguesas queriam economizar, juntar escudos, comer quase de graça.

Os trens na Alemanha não costumavam causar surpresas desagradáveis aos viajantes. Pontualmente, chegamos a Hamburgo. No guichê, perguntei quanto custava a passagem e avisei às portuguesas: “Uma senhora disse que o bilhete pode ser comprado no trem. Mas é mais barato se for comprado aqui”. Uma das portuguesas não concordou: “Ouvi dizer que se comprarmos no trem é mais barato”. “Transporte nos países comunistas é mais barato”, afirmou a segunda. A terceira, em sintonia com as amigas, argumentou: “Estão querendo que você compre aqui”. Resolvi confiar na senhora alemã, tivera boa experiência com a alemã honesta no hotel em Munique. Comprei meu bilhete. As portuguesas queriam economizar, juntar escudos, decidiram comprar no trem.

Durante a viagem, as conversas eram sobre nossas expectativas, sobre o que iríamos encontrar no outro lado do muro. Na fronteira entre as duas Alemanhas, lembrei-me da metáfora de Churchill: a cortina de ferro. Uma cerca fortificada, elétrica, de 1.400 quilômetros separava a República Federal da Alemanha da República Democrática Alemã. A comunista não era a federal, era a democrática. Confuso? O nome das moedas era idêntico: marco. De agora em diante, seguindo a denominação oficial dos países, trataremos o marco ocidental de “marco federal”; e o marco oriental, de “marco democrático”.

A polícia entra no trem. Chamavam a atenção a falta de simpatia dos policiais e a cor do uniforme deles: verde-russo. Cães farejadores examinaram nossas bagagens. Chega a vez do cobrador. As portuguesas tomaram um susto quando souberam o preço do bilhete, muito mais caro do que o comprado em Hamburgo. Xingaram o cobrador alemão comunista. Para sorte delas, o xingamento foi em português. Toda a economia que as portuguesas tinham feito ao comprar as bananas estragadas foram muro abaixo.

Surgiu mais uma cerca, a que atravessava o território alemão oriental até o lado ocidental de Berlim. Da janela do corredor do trem, a cerca atrapalhava a vista. A segunda guerra acabara em 1945. Por dezesseis anos, não houve muro em Berlim. O que havia no lado ocidental era trabalho sobrando e falta de trabalhadores. Os alemães orientais queriam também participar da festa e fugiam para o outro lado. Até que, numa madrugada de agosto de 1961, os comunistas construíram um muro que passou a circundar Berlim Ocidental. Eram dois muros, de fato. Entre eles, ficou preso o Portão de Brandemburgo.

Chegamos a Berlim Ocidental. Na Kurfürstendamm, a Champs-Elysées berlinense, as vitrines impressionavam. Era como se estivessem ali para dizer aos alemães do outro lado do muro “vejam como poderia ser, comparem com o que vocês estão fazendo aí”. Mas os russos teriam sido mais sabidos que os americanos na divisão da cidade, eles teriam ficado com a melhor parte dela. Uma visita à praça Gendamenmarkt haveria de confirmar essa hipótese.

Para ver o que havia do outro lado do muro, precisávamos de um visto, válido somente por 24 horas; e os estrangeiros tinham obrigação de comprar sessenta marcos democráticos. Se em Berlim Oriental não mostrássemos comprovante de que os marcos democráticos tinham sido trocados lá, passaríamos dias ou semanas presos. Com essa informação, chegamos ao posto de controle, onde haveria a passagem para o lado oriental. Em Berlim Ocidental, um marco federal valia quatro marcos democráticos. Feito o câmbio, ao pôr na mão uma moeda de um marco democrático, sentimos o quanto ela era leve, parecia de lata. Pesada foi a conta no câmbio paritário, os alemães orientais trocaram um marco federal por um democrático. A sabedoria dos comunistas manifestou-se mais uma vez.

Passamos por várias barreiras de oficiais não muito simpáticos de uniforme verde-russo. Ao sair, tivemos a sensação de ter atravessado um túnel do tempo. Só não sabíamos quantas décadas havíamos retrocedido.

Havia poucas pessoas na rua, pouco movimento de carros, dos fumacentos trabants, o fusca deles. Vimos também carros enormes, pretos, lembravam limusines. Quando uma das portuguesas viu um desses carros, exaltou-se: “Olhaí, o povo anda de trabant e os membros do partido andam nesses carros luxuosos!” Tentei defender a boa intenção dos comunistas. Berlim havia sido dividida por quatro países: EUA, Grã-Bretanha, França e URSS. Cada uma das portuguesas representava uma potência ocidental. Eu tinha uma inclinação soviética por influência das assembleias na faculdade, era um representante informal dos russos.

Entramos numa loja que parecia uma padaria. Os produtos tinham embalagem igual, branca, mas ao contrário do supermercado em Munique, a impressão na embalagem era de baixa qualidade, as letras estavam quase apagadas. As portuguesas reclamaram da embalagem; tentei defender o socialismo, o comunismo (até hoje não sei muito bem a diferença): “O que importa é o conteúdo. Um litro de leite aqui custa um décimo do preço do lado ocidental”. Era o meu viés esquerdista mais uma vez em ação.

Hora do almoço. Foi completo, com toda pompa: entrada, prato principal, bebidas, sobremesa. Quando pedimos a conta, as portuguesas tomaram o segundo susto da viagem, a refeição tinha sido quase de graça. Elas se comoveram, compararam com os preços em Portugal, um dos países mais baratos da Europa. Cheguei a pensar “agora elas aderem à causa socialista”. Mas nem assim se renderam, reclamaram do atendimento do garçom, que demorou muito.

Na avenida Karl Marx, de longe via-se a torre de televisão; de perto, do lado direito, um prédio do partido parecido com um caixote. Num cartaz, viam-se felizes camponesas ordenhando vacas socialistas. Perguntei a um senhor que passava próximo:

– O muro é grande, né? E alto. Por que ele foi construído?

– É uma barreira contra o fascismo, uma proteção para nos separar dos nazistas e dos imperialistas americanos.

O alemão apressou o passo e se despediu. O tempo passou rápido e o visto era válido por apenas um dia. Pouco antes da meia-noite, voltamos para o lado ocidental sem saber o que fazer com os marcos democráticos que sobraram. As portuguesas com suas convicções anticomunistas ainda mais fortes; eu, com minhas crenças, que já não eram firmes, abaladas.

O muro de Berlim não viera para ficar, em novembro de 1989 sua queda foi precipitada por um anúncio improvisado de um comunista não sabido. O posto ficou fora de controle. Ao ver a notícia pela televisão, não me contive, liguei para uma das portuguesas: “Está vendo? Bem que você dizia, o muro não iria durar muito!” A portuguesa, que previra a derrubada do muro, fez outra previsão em 1989: “O país mais capitalista de todos será a China”.

Chovia em Trás-os-Montes.

acoelhof – Fortaleza (acoelhof@gmail.com)

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