sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Sem eira nem beira em Munique




ACOELHOF



Acabou a verba, antes de chegar o frio, na região mais próspera da Alemanha, na Baviera, em Munique. Quebrado numa cidade rica. Eu precisava arrumar uma ocupação, já que emprego não seria possível, não há alemão na minha árvore genealógica. Eu poderia passar por turco. Pensei em duas atividades: lavador de prato em restaurante ou de banheiro em hotel, embora eu não tivesse experiência em nenhum desses dois ofícios. Meu diploma de engenharia poderia me ajudar a arrumar um serviço de servente de pedreiro.


Ao contrário da Gare du Nord, de Paris, estação de trem onde não deixavam os mochileiros dormirem, as autoridades da Hauptbahnhof de Munique eram mais tolerantes. Dezenas de mochileiros dormiam dentro dessa estação. Por muitas semanas, ela foi o meu teto. Eu só não gostava do método que os alemães adotavam para acordar os hóspedes. Eles vinham em companhia de um pastor alemão. Não, não era por convencimento que eles tentavam nos retirar de lá. Pelo menos a polícia alemã, por gentileza, colocava focinheira nos cães. Outro inconveniente é que não podíamos escolher o horário em que desejávamos acordar.


Na estação, conheci um norueguês muito diferente do que cometeu o atentado em Oslo e o massacre na ilha de Utoeya. De semelhante, só a aparência física. Ele havia sido furtado, estava sem dinheiro e foi parar lá também. Naquele dia, eu ainda não estava quebrado, restavam poucos marcos. Convidei o norueguês a ir a um supermercado próximo. Na Alemanha, em 1985, havia uma cadeia de supermercado muito barata, em que os produtos vinham com uma embalagem igual, toda branca. Ele concordou, mas com uma ressalva: “Já falei com meus pais, eles vão mandar dinheiro. Assim que receber, lhe pago”. Comprei o básico e comemos lá mesmo na estação. Era o terceiro mundo alimentando o primeiro.


O norueguês desapareceu. Somente dias depois, à noite, veio me procurar. “Recebi a grana, vim lhe pagar”, disse. Eu tinha gasto muito pouco no supermercado, esperava receber só alguns marcos. Ele me surpreendeu mais uma vez: “Hoje você vai ser meu convidado. Vamos jantar, não se preocupe, é tudo por minha conta!” Preferia receber em espécie, dada a minha situação, mas não poderia recusar o convite. Pela primeira vez, fui a um restaurante. O norueguês prosseguiu com a gentileza: “É cedo, vamos sair”. No metrô, apontou para mim e disse alto para quem quisesse ouvir: “Ele aqui é meu amigo! Me ajudou!” De madrugada, foi me deixar de táxi na estação. Foi a única vez em que andei de táxi naquela viagem.


A coisa complicou quando conheci dois argentinos. Contei que a grana estava no fim, precisava arrumar trabalho. “Soubemos de um negócio ali. Fizemos, foi tranquilo. Eles pagam bem. Se quiser...”, disse um deles e me passou um telefone. Na situação em que eu estava, resolvi ligar para saber detalhes.



A mulher que atendeu foi sucinta: “Você faz uma atividade e é remunerado por isso”. Deu-me o endereço, ficava no subúrbio de Munique. Depois do fim da linha do metrô, ainda tive de pegar um ônibus. Ao chegar ao edifício, não vi placa alguma de identificação. Na portaria, perguntei a uma senhora: “Onde é, por favor?” Ela se limitou a responder: “Quinto andar”. A fila era grande, aguardei minha vez. Havia muitos sul-americanos; europeus também, principalmente turcos e irlandeses. A Irlanda passava por crise econômica. Depois tornou-se o “tigre celta”, o laboratório da desregulamentação, e quebrou.


Quebrado eu também estava e num local que lembrava um laboratório. Ficou claro quando chegou minha vez de ser entrevistado por um senhor todo de branco, parecia um médico. Logo no início, ele tratou da remuneração. Podia-se ganhar em dois ou três dias o equivalente a um mês de trabalho. Fui respondendo às perguntas, ele preenchia um formulário. Eu ficava cada vez mais assustado. Ele esclareceu: “Antes de um medicamento ser lançado no mercado, fazemos testes com voluntários”. Prosseguiu: “De início, são feitos todos os exames médicos para saber a real condição de saúde do voluntário. Depois, ele toma o remédio e fica aqui conosco por uns dias. Por fim, fazemos novos exames e comparamos os dois”. O sujeito, por eufemismo, usava a palavra “voluntário” em vez de “cobaia”.


Caiu a ficha por completo, olhei para ele e disse que não iria fazer aquilo. Ele ficou preocupado, mas ressaltou que todas as pessoas que estavam ali eram voluntárias, ninguém era obrigado a fazer nada. E concluiu: “Já tomou o café da manhã? Temos um restaurante aqui. Você pode ir lá e se servir à vontade”. Essa proposta eu poderia aceitar. Foi o melhor café da manhã que tive em Munique. Só perdeu para um café colonial que desfrutei nas Serras Gaúchas muitos anos depois.


Saí de lá, cabisbaixo, pensando em como os humanos tratam outros humanos. Os animais, eu já sabia que faziam parte dessas experiências. Mas eles não podem dizer não. Resolvi ir ao consulado do Brasil, pedir ajuda. A secretária do cônsul me disse que ele não poderia me atender naquele momento. “Não tem problema, posso aguardar, vou esperar aqui”, afirmei.



Muito tempo depois, o cônsul me recebeu:


– Não vou tomar o tempo do senhor, vou direto ao assunto. Estou sem dinheiro, tentando arrumar trabalho. Enquanto a situação não se resolve, o consulado poderia me ajudar?
– Muitos brasileiros vêm aqui e inventam histórias, dizem que foram assaltados. Já cheguei a dar dinheiro do meu próprio bolso. Infelizmente, o consulado não tem verba pra isso.
– Seria emprestado. Assim que puder, lhe pago.
– Não tenho como ajudar você. O consulado não tem verba. Teria de ser do meu bolso.


O cônsul resistia. Insisti, falei com muita convicção, olhando diretamente para ele: “O senhor não poderia me ajudar? Garanto que lhe pago depois!”
O cônsul puxou a carteira do bolso, retirou uma nota de cem marcos e me deu. Mas alertou: “Se você não me pagar, vai prejudicar todos os outros brasileiros que vierem aqui depois pedindo ajuda!”


Com cem marcos, eu conseguiria escapar por mais uns dias. Fui gastando o dinheiro do cônsul até que um dia conheci um brasileiro na estação. Ele estava hospedado num albergue da Igreja. “Não deve haver mais vaga lá. Mas se quiser ir comigo...”, disse. Fomos. Passei a dormir na cozinha, num canto. De zero estrela, a hospedagem tornou-se padrão uma estrela.


Enfim, um dia surgiu uma oportunidade de trabalho. Brasileiros que estavam hospedados no albergue da Igreja trabalhavam num hotel lavando banheiros. Era uma das atividades que eu cogitava. Perguntei se não havia mais uma vaga. “Quando um de nós não for, levo você comigo e lhe apresento lá”, disse um paulista. Para tudo, você precisa de carta de recomendação. Agora eu tinha a minha. Fomos lá. “Ele é do Brasil, veio substituir outro brasileiro”, esclareceu. A senhora que contratava era estrangeira também. Havia uma solidariedade implícita entre os estrangeiros, por certo. E eu nunca tinha lavado um banheiro em casa, só sujava.


Descemos para “assinar a carteira”. Na verdade, eu não tinha permissão para trabalhar. Os alemães assinaram minha ficha como se eu fosse estudante lá. Assim eu poderia trabalhar por um tempo. O pagamento era feito semanalmente, às sextas-feiras. Eu recebia aproximadamente de três a quatro salários mínimos do Brasil por semana. Livre de despesas. O café da manhã era por conta do hotel, o almoço também e eu dormia de graça no albergue da Igreja. O fluxo de caixa melhorou bastante.


No hotel, o trabalho era feito por um casal: a mulher passava o aspirador de pó no quarto e arrumava a cama, o homem lavava o banheiro. Todo trabalho necessita de técnica para ser feito, uma funcionária do hotel me ensinou no primeiro dia. A tarefa deveria ser feita numa determinada sequência. Na Alemanha, até para lavar banheiro havia programa de treinamento.


Por dia, eu lavava os banheiros de um andar inteiro. Quando chegava ao albergue à noite, pensava “não volto lá amanhã”. Mas a situação já tinha sido pior e eu acabava voltando. Trabalhava com italianas, elas falavam um dialeto do sul da Itália. Já esperava que elas fossem do sul. Há duas itálias: Roma acima e Roma abaixo.


Desde o início, uma coisa me chamou a atenção: enquanto eu limpava um quarto, as italianas partiam na frente e iam abrindo os outros quartos. Sempre que eu entrava num quarto novo, ele já tinha sido aberto por uma italiana. Nunca entrávamos juntos. Até o dia em que houve mudança na escala e trabalhei com uma alemã, de uma cidade do interior. Logo no primeiro quarto, enquanto eu estava no banheiro, ela virou-se para mim, me entregou umas moedas e explicou: “Os hóspedes costumam deixar gorjetas, trabalhamos juntos, você fica com metade”. Virei para o lado e xinguei até a terceira geração das italianas. Não fico surpreso hoje quando a Alemanha tem Angela Merkel; e a Itália, Silvio Berlusconi.


Lembrei-me do cônsul. Sempre que ligava para o consulado, a secretária me dizia que eu não poderia ser atendido. Fui lá. Mal cheguei, ela foi logo dizendo que o cônsul estava ocupado, não poderia me receber. “Por favor, diga que vim pagar o que devo!” A secretária foi conversar com ele, que me atendeu na hora. Entreguei ao cônsul uma nota de cem marcos. Ele riu, parecia não acreditar. Despedi-me com um aperto de mão e um obrigado.


Um dia ainda vou me hospedar naquele hotel em Munique. Será com cuidado para não desarrumar o quarto nem sujar muito o banheiro. Antes que isso aconteça, em todo hotel em que me hospedo, tenho sempre deixado uma boa gorjeta ao lado da cabeceira da cama.

Acoelhof – Fortaleza (acoelhof@gmail.com)

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