sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Keynes e o "quatrilho"


Por Claudia Safatle - Valor 26/08

Nas 1.549 páginas do e-book "Crise, Estado e Economia Brasileira", o economista José Roberto Afonso percorre integralmente a obra de John Maynard Keynes para discutir o ativismo fiscal que fundamentou a resposta à crise financeira global de 2008/2009, a maior do pós-guerra. Naquele momento, governos do mundo todo acionaram o Estado para salvar suas economias, elevando substancialmente os gastos e o endividamento públicos. Hoje, atolados em dívidas que os mercados suspeitam que não conseguirão pagar e patinando em baixo crescimento, países de cuja solidez ninguém duvidava até muito recentemente beiram a insolvência. O remédio se confundiu com o veneno.

O livro - uma adaptação e atualização da tese de doutorado do autor, apresentada ao Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp) - traz também ampla análise da reação do governo brasileiro à devastação que se seguiu à quebra da Lehman Brothers, em setembro de 2008. Afonso conclui que, aqui, a reação fiscal propriamente dita foi tímida se comparada a outros governos. O motor para tirar o Brasil da rápida e profunda recessão foi a expansão do crédito. Esta só foi viável a partir dos pesados repasses do Tesouro Nacional para os bancos públicos, particularmente para o BNDES. O banco de desenvolvimento, desde então e até o mês de junho deste ano, já recebeu R$ 271 bilhões em recursos da União.

O tripé macroeconômico que orientou a política brasileira nos últimos 12 anos, segundo Afonso, transformou-se num "quatrilho". Ao regime de metas para a inflação, câmbio flutuante e geração de superávit fiscal soma-se, agora, o crédito.

Keynes é, certamente, um dos mais famosos e geniais economistas do século passado. Dedicou-se a entender como nasceram as grandes crises e, especialmente, a defender a ação estatal para atenuar seus impactos.

Citado, seguido e reverenciado, nem sempre, porém, foi bem compreendido. Dois de seus principais biógrafos, Robert Skidelsky e Paul Davidson, já alertaram que as chamadas políticas keynesianas muitas vezes abrigam ideias que o economista britânico jamais apregoou.

A defesa que Keynes fez de uma política fiscal expansionista se restringia a situações extraordinárias: uma grave e generalizada crise, como a Grande Depressão dos anos 30. Seria uma intervenção provisória, da qual o Estado deveria desembarcar tão logo a economia reagisse. Ele pouco escreveu, no entanto, sobre como deveria ocorrer essa retirada.

Mais correto, segundo Afonso, é considerar que, para Keynes, a política fiscal deveria assumir papéis diferentes em diferentes conjunturas, "ao contrário de um senso infelizmente comum que costuma associar o economista britânico à defesa de uma expansão permanente dos gastos públicos em qualquer contexto".

E o que marca uma crise, nessa ótica, é a ruptura das convenções (as 'expectativas racionais', conforme entendimento de uma corrente do keynesianismo). Isso é diferente e muito mais grave do que as oscilação cíclicas da economia. "Quando a incerteza chega ao ponto de paralisar as decisões empresariais não apenas de investir, mas até de produzir, se instala a crise que pode levar até mesmo a uma grande depressão, como a experimentada nos anos 30". O Estado, sozinho, não conseguiria reverter a depressão econômica, mas poderia impedir que a situação piorasse.

Pode-se inferir, à luz da Teoria Geral ("A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", principal obra do economista britânico, lançada em 1936), que, para enfrentar a crise tal como entendida, o que importava para Keynes era que o governo gastasse mais, gerasse déficit e o financiasse com o aumento da dívida. A emissão de dívida seria a forma de atender à exacerbada preferência pela liquidez dos agentes econômicos em momento de incerteza radical.

Ficou conhecida sua proposta de o governo gastar ainda que fosse para abrir buracos nas vias públicas. "Chama a atenção que não seria o caso apenas de contratar trabalhadores para abrir buracos. Também seria necessária outra turma de trabalhadores para fechar os buracos", lembra Afonso. Essa foi uma figura simbólica de impacto, à qual Keynes recorreu para deixar claro que, numa situação desesperada, valia tudo, desde que se aumentasse o gasto e a dívida pública para reagir à depressão. E, muito provavelmente, Keynes chegou a uma argumentação extrema por causa da herança liberal dos políticos e governantes da época, que resistiam à ideia de expansão do tamanho do Estado. Eles desaprovavam mais ainda os investimentos públicos, pois estes geravam despesas no presente e no futuro.

Afonso tomou o cuidado de recorrer às próprias palavras e obras de Keynes (cerca de três dezenas de volumes) e não poupou citações do economista britânico, entre muitas outras. O livro traz 32 páginas e 300 títulos de referências. Afonso estima que cerca de 80% destas estão disponíveis na internet. O e-book traz um 'link' que, com um clique, permitirá a abertura do trabalho correspondente.

"A crise financeira global virou uma crise de crédito no Brasil", sintetiza o autor. As reações monetárias tiveram maior dimensão e impacto na economia do que as fiscais, mas um elo comum entre elas passou pelo crédito, cuja expansão foi liderada pelos bancos públicos com recursos do Tesouro Nacional. Este fez o aporte para os bancos com expansão da dívida pública, em grande parte absorvida pelo mercado financeiro, que preferiu concentrar suas aplicações no curtíssimo prazo (através das operações compromissadas).

A dívida bruta do governo geral, calculada conforme metodologia internacional, cresceu sem qualquer limitação. Era de 57,7% do PIB em 2007, chegou a 68,9% em 2009 e este ano deve cair para 66,6%, segundo dados do Monitor Fiscal do Fundo Monetário Internacional (FMI). "Será que o fato (...) não exige qualquer reflexão, preocupação ou limite?", pergunta o autor.


No Brasil "depara-se com um curioso paradoxo em torno da política fiscal". Se, por um lado, a principal resposta fiscal, que Afonso considerou tímida, foi a renúncia a receitas (com incentivos fiscais localizados), de outro, aumentou o receio em relação à expansão acelerada do gasto público federal depois da crise. Boa parte da elevação da despesa foi de caráter permanente e teve origem em medidas adotadas antes da crise global (aumento da folha salarial e dos benefícios previdenciários). Assim, a política fiscal ajudou a sustentar a demanda doméstica diante da recessão, mas deixou como herança uma pressão permanente sobre o gasto, o déficit e a dívida.

O autor chama a atenção, ainda, para as intrincadas e complexas interconexões entre os instrumentos de política econômica. "As finanças públicas já estavam vinculadas de forma peculiar com a moeda, os juros e o câmbio, e, depois da crise, o crédito também veio a ser somado a essa teia." São 'nós' que estrangulam entre si os diferentes instrumentos de política econômica e que exigiriam a adoção, segundo Afonso, de novas convenções fiscais, como, por exemplo, privilegiando a mensuração da dívida segundo metodologias compatíveis com as adotadas no resto do mundo - caso dos conceitos bruto e estrutural.




O Brasil atravessou a crise seguindo o roteiro traçado por Keynes sete décadas atrás, conclui Afonso. Mas estendeu suas ações para os anos seguintes, mesmo quando a economia crescia de forma acelerada, como em 2010. "Quando empresas optam por privilegiar aplicações financeiras e de curto prazo em lugar de mobilizar recursos próprios para aumentar os investimentos e a produção, e até os bancos ficam com medo de emprestar para outros bancos, restou emprestar cada vez mais para o governo", diz Afonso. Mas esta deveria ser uma solução temporária, até que a confiança fosse restaurada.

No sexto e último capítulo, Afonso faz a defesa de três reformas institucionais no campo fiscal: tornar mais austera a responsabilidade fiscal e concluir a implementação da lei (LRF); inovar e fazer a reforma do orçamento; e adotar um novo sistema tributário. Não basta mexer no atual, que "está tão torto que não tem mais conserto."

Editado pela Agir, o e-book já está disponível na livraria Singular e será distribuído também pela Amazon e Saraiva. A edição impressa será lançada em setembro, na Bienal do Livro no Rio de Janeiro. A receita obtida será doada ao Instituto Refazer.

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