quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Passeio socrático


Por Frei Betto
Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da
Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos,
recolhidos em paz nos seus mantos cor de açafrão.
Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala
de espera cheia de executivos dependurados em telefones celulares;
mostravam-se preocupados, ansiosos e, na lanchonete, comiam mais do
que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas
como a companhia aérea oferecia um outro café, muitos demonstravam um
apetite voraz. Aquilo me fez refletir: Qual dos dois modelos produz
felicidade? O dos monges ou o dos executivos?
Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e
perguntei: “Não foi à aula?” Ela respondeu: “Não; minha aula é à
tarde”. Comemorei: “Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir
um pouco mais”. “Não”, ela retrucou, “tenho tanta coisa de manhã...”
“Que tanta coisa?”, indaguei. “Aulas de inglês, balé, pintura,
piscina”, e começou a elencar seu programa de garota robotizada.
Fiquei pensando: “Que pena, a Daniela não disse: ‘Tenho aula de
meditação!’”
A sociedade na qual vivemos constrói super-homens e supermulheres,
totalmente equipados, mas muitos são emocionalmente infantilizados.
Por isso as empresas consideram que, agora, mais importante que o QI
(Quociente Intelectual), é a IE (Inteligência Emocional). Não adianta
ser um superexecutivo se não se consegue se relacionar com as
pessoas. Ora, como seria importante os currículos escolares incluírem
aulas de meditação!
Uma próspera cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis
livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de
ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas
me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito.
Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: “Como estava o defunto?”.
“Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!” Mas como fica a questão
da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?
Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na
realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo
é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega aids,
não há envolvimento emocional, controla-se no mouse. Trancado em seu
quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem
nenhuma preocupação de conhecer o seu vizi­nho de prédio ou de quadra!
Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há
compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da
linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos
virtuais, cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro
lado, pois somos também eticamente virtuais…
A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do
espírito. Televisão, no Brasil - com raras e honrosas exceções -, é
um problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que ficamos
um pouco menos cultos. A palavra hoje é ‘entretenimento’; domingo,
então, é o dia nacional da imbecilidade coletiva. Imbecil o
apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil
quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue
vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da
soma de prazeres: “Se tomar este refrigerante, vestir este tênis,­
usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!” O problema é
que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o
desejo, que acaba­ precisando de um analista. Ou de remédios. Quem
resiste, aumenta a neurose.
Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus
pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o
direito de apresentar uma su­gestão. Acho que só há uma saída: virar
o desejo para dentro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir! O
grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo,
começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento
globocolonizador, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor.
Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis:
amizades, auto-estima, ausência de estresse.
Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à
Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve
procurar saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de
que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status
construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping
center. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas
arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de
qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingos. E ali
dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de
rua, sujeira pelas calçadas...
Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela
musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas
aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por
belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos
céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no
cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar,
certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam todos na
eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o
mesmo hambúrguer de uma cadeia transnacional de sanduíches saturados
de gordura…
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas:
“Estou apenas fazendo um passeio socrático.” Diante de seus olhares
espantados, explico: “Sócrates, filósofo grego, que morreu no ano 399
antes de Cristo, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o
centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o
assediavam, ele respondia: “Estou apenas observando quanta coisa
existe de que não preciso para ser feliz.”


* Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, escritor, religioso
dominicano e assessor de movimentos sociais, é autor de "Típicos
Tipos" (A Girafa), Prêmio Jabuti 2005, de “O desafio ético”
(Garamond), entre outros livros. Foi assessor especial da Presidência
da República (2003-2004).

rodrigocmiranda

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