segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Um cearense em Reikjavík

Maio 1998

Em todo lugar se encontra um cearense, mas não se sabe ao certo o motivo. Pesquisadores sustentam a hipótese de que a cabeça chata do espécime causaria tendência a migração. A Islândia não poderia passar em branco. E lá se foi o cearense Severino.

Ele precisava fazer uma escala para não ser vítima de congelamento súbito, o clima de Reykjavík não é parecido com o da caatinga. A cidade escolhida foi Amsterdã. Já no aeroporto, a vida de Severino começa a se complicar. A polícia desconfia de um saco de farinha importada do Ceará. “Se a autoridade constituída não acredita que é farinha, pode fazer aquele teste!”, assegura. Após conseguir se livrar da polícia, o cearense vai à estação ferroviária central de Amsterdã. Num domingo de Páscoa, na fila de reserva dos hotéis, ouve um “arre égua!”. Cremilda era o nome da criatura, a natureza não tinha sido muito generosa com ela. Cremilda consegue um quarto de casal e propõe dividi-lo com o cearense. Preocupado, mas sem alternativa, ele concorda em ficar no mesmo quarto com a donzela. Para sorte de Severino, eram duas camas de solteiro. O esquema tático do auxiliar-técnico da seleção brasileira, Zagallo, foi vitorioso: zero a zero (nesse caso, até que o empate foi um bom resultado).

Depois de uma noite bem dormida, o casal (por força das circunstâncias) foi conhecer Amsterdã. Severino achava tudo interessante, mas muito estranho. Senhoras passavam com seus netinhos ao lado de lojas com fotos de mulheres nuas em poses nada convencionais. As senhoras já nem olhavam. Uma ou outra criança se aventurava a levantar a vista. Em várias partes da cidade, em áreas residenciais até, havia um cartaz que divulgava uma peça de teatro. O cartaz trazia o órgão sexual masculino de casaco. Não era desenho. Era real, senhoras e senhores, era foto. Em close! Em estado de alerta máximo! Cremilda olhava o cartaz, olhava para Severino e se insinuava. Severino fazia de conta que não entendia nada. Mas uma coisa que ele não entendia mesmo era por que os holandeses gostavam tanto de café. Haja coffee shop. E o café devia ser servido bem quente, de longe se via a fumaça.
No dia seguinte, por precaução, Severino se muda para um albergue. Mas Cremilda vai junto. Lá, pelo menos ficariam homens de um lado, mulheres do outro (que arrumassem um lugar para Cremilda). Ansioso, impaciente, incomodado, ávido, seco, Severino resolve apelar e decide conhecer o Red Light District, o bairro da luz vermelha. Examina atentamente cada vitrine, cria coragem e vai conversar com uma lady. “São 50 florins to suck and fuck”, disse ela. Tudo em apenas 15 minutos. Com a calça apertada e o orçamento mais ainda, ele desiste da empreita. Em 15 minutos, mal conseguiria tirar as duas camisas e os dois casacos que usava. Zagallo vence de novo: zero a zero.

Cansado de Cremilda e de falar inglês errado em Amsterdã, Severino resolve falar português errado em Lisboa. No aeroporto, quer arrumar um meio de transporte barato e pergunta como se faz para chegar ao centro da cidade. E a rapariga responde: “É só pegar um táxi” (o cearense percebeu que estava mesmo em Portugal). Ao chegar ao albergue, larga a trouxa no quarto e vai se confraternizar no bar. Conhece uma sueca. O barman, um carioca, logo fica a par do drama do cearense. Na tentativa de ajudar o conterrâneo, sugere: “Severino, enche a sueca de caipirinha!”. Aceita a sugestão. A sueca começa a sentir a força da 51. Depois de várias rodadas, Severino, já pensando em outro número, vai com a sueca ao último andar do albergue. Mas ele tinha dispensado a cueca, ela percebe que o atacante está em impedimento e dribla o cearense. Mais uma vez, Zagallo foi vitorioso: zero a zero.

Na manhã seguinte, no pequeno almoço, vulgo café da manhã, Severino conta o resultado da peleja ao carioca, que, em mais um gesto de solidariedade, sugere: “Vá ao Algarve; no sul, o clima é mais propício”. Como a viagem de comboio, vulgo trem, seria demorada, Severino compra um título de transporte, vulgo passagem, em um autocarro, vulgo ônibus.

Chegando a Lagos, consulta o mapa para se certificar de que o motorista não havia errado o caminho. Arregala os olhos e não acredita no que vê. Os avisos, os anúncios nas placas, era tudo escrito em inglês (às vezes, em português também). Pergunta à primeira pessoa que passa se a Inglaterra tinha invadido Portugal. Um lusitano da melhor idade não disfarça o contentamento: “Até que enfim encontrei alguém que fala português!”. Severino, sem perda de tempo, pergunta-lhe onde pode encontrar umas raparigas. Quando soube do drama de Severino, o português sugeriu um local bem próximo.

À noite, o cearense com o endereço à mão (a ainda na mão) parte cheio de esperança. Logo na entrada, Severino começa a ser paquerado por todas e acredita que, finalmente, chegou sua vez. Empolgado, confiante, exultante, diz para si mesmo: “Lá no Ceará é uma dificuldade, mas hoje quem escolhe sou eu. Acabo com o zero a zero nem que seja nos pênaltis!”. Mas começou a desconfiar que havia algo errado. Todas elas diziam a mesma coisa, a conversa terminava da mesma maneira: em escudos. Por um ruído na comunicação, um erro na tradução do português para o brasileiro, o cearense tinha ido parar na zona. De novo, vitória de Zagallo: zero a zero.

Ainda com um trocado de esperança, Severino volta a Amsterdã e parte rumo à Reikjavík numa missão não tão secreta, mas até então impossível. Do alto, ao avistar a ilha, tem a impressão de estar descendo na Lua. Na chegada nem carimbam seu passaporte, não há controle de imigração mais eficiente do que a proximidade com o Círculo Polar Ártico.

Na Islândia, há uma única estrada circundando a ilha, são muitos os rios e não há pontes. A água de Reikjavík é considerada a mais pura da Europa. Mas não é a mais cheirosa, dado o alto teor de enxofre. A cerveja só foi liberada em 1989 e, desde então, os islandeses vêm tentando recuperar o atraso. Um país com 250 mil habitantes, metade deles vivendo na capital, não deve ter um interior muito atraente. Mas as agências de turismo dizem que tem: montanhas geladas, desertos de lavas e pedras, gêisers.

E por que falar disso? Por acaso Severino queria ver a baba vermelha do vulcão? O problema era mudar o esquema tático de Zagallo, sair do zero a zero. Outro, ele só percebeu tarde demais. Reykjavík era uma cidade muito cara. Comecemos pelos gêneros de primeira necessidade: uma latinha de cerveja custava dez reais; um cafezinho, quatro; e não se comia quase nada por menos de trinta. E, para complicar, o prato típico islandês era testículos de carneiro.

O tempo corria e Severino ficava cada vez mais preocupado, via poucas pessoas nas ruas. Tudo somente ficou claro à noite. Com o preço astronômico das bebidas, os islandeses bebem em casa e só saem depois das 11 da noite. Severino vai então à boate mais badalada da cidade. Se o clima é rigoroso, o traje é a rigor. Mas trajando jeans, é barrado na entrada. Apela, narra todo seu drama para tentar comover a autoridade competente. Diz que veio de muito longe. O porteiro pergunta:
- Você veio de onde?
- Do Ceará.
- Como?! De onde?
- Do Brasil!
- Ah, Brasil. Vocês têm o melhor futebol do mundo (ele não conhecia o esquema tático de Zagallo).
O cearense consegue entrar e ainda crê na solidariedade das islandesas. No balcão, em posição estratégica, lança a sorte, procura a mais atrevida. Afinal, era sua última noite. Convida-se a sentar à mesa e inicia a conversa. Ele acredita e fala baixinho: “Sai que é tua, Severino! Sai que é tua!”.
Saem juntos. No carro, Severino tira o cinto por segurança e torce para que a islandesa erre de câmbio. Acelera. Verifica o airbag duplo e acelera. Atração ativa. Já sem freios, mas com direção, inicia a inspeção no capot do Fusca. Mas é multado por excesso de libidinagem. Tenta fazer uma revisão. Prazo vencido.
De volta à Amsterdã, de farol baixo, suspira: “Pensando bem até que Cremilda era uma gracinha.”
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●Acoelhof – Fortaleza (acoelhof@gmail.com)

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